São Paulo, terça-feira, 5 de abril de 1994
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Coerência de pacientes e de médicos

JOSÉ KNOPLICH

"Suas necessidades e meus anseios, irmãozinho, têm que caber na praça de liberdade, que juntos vamos construir no mundo de amanhã".(Janusz Korczak, médico e educador)

Durante os últimos 20 anos, houve uma revisão do papel do paciente nas decisões a serem tomadas nos tratamentos médico-hospitalares. Sempre houve um conflito entre os valores sociais, éticos defendidos pelos médicos e os valores que interessam a pessoa que está doente.
Na tentativa de eliminar a onipotência do médico, a sociedade estimulou a idéia de que o próprio paciente deveria gerenciar, impondo os seus valores e necessidades, na relação médico-paciente-doença-saúde pública.
A doença para o indivíduo é um momento patético em que há uma ruptura do bem-estar físico, mental, social, emocional e espiritual. Cabe ao médico diagnosticar e tratar essa ruptura. Há dois modelos básicos nessa relação.
Nos países europeus e no Canadá, predomina o modelo paternalista (governamental) em que o médico em nome da saúde pública assume o controle dessa relação.
Feito o diagnóstico da moléstia, o médico, conhecedor das limitações econômicas do sistema público de atendimento, marca retornos e operações com intervalos de meses e até anos, desde que a orientação inicial tenha sido realizada e os medicamentos (a preços acessíveis ou até grátis) tenham sido fornecidos.
O paciente pode seguir ou não o tratamento, pois a doença crônica não tem "cura" e sim controle. Há casos em que é mais adequado para o indivíduo, por motivos psicológicos, assumir o papel de doente, vítima e não procurar o tratamento. Uma das vantagens do "papel de doente" é que ele não precisa trabalhar, fazer sexo e lutar pelo sucesso.
O atendimento é no consultório particular do médico e regionalizado, isto é, um certo número de pessoas tem o mesmo médico de família por longos anos.
O outro tipo de relacionamento é o norte-americano, em que o paciente é considerado um consumidor que gerencia o tratamento.
Nos Estados Unidos, o código de defesa do consumidor é uma tradição de quase meio século e por leis severas, protege as pessoas por fraudes e enganos de fabricantes e comerciantes. No atendimento médico, os tribunais acertam reclamações que resultam em multas e indenizações enormes. Por isso a relação se deteriorou e passou a ser de desconfiança. O médico protege-se pedindo todos os exames e radiografias, com a idéia de que poderá precisar comparecer a um tribunal para comprovar a sua capacidade.
O paciente pode tudo, desde que pague. Exige informações sobre a doença, para que nenhuma chance de tratamento seja perdida. Quer o melhor especialista.
Essa é a razão que os custos dos serviços médicos-hospitalares nos EUA são incontroláveis, atingindo em 1993, 14,3% do PIB. Algumas situações geradas por esse modelo:
A mulher grávida, que trabalha, quer ter um parto sem dor e com data marcada para voltar ao serviço. Tem medo que o parto vaginal irá interferir na sua futura vida sexual. Os tribunais aceitam esse raciocínio como válido e o índice de cesarianas, que em 1965 era de 4,5%, passou para 25%, em 1992, com gastos extras de US$ 8 bilhões por ano.
Os homens apavorados com as doenças cardíacas abrigam um excesso de operações de revascularização do miocárdio (safenectomizados) com um gasto extra de US$ 12 bilhões no ano de 1993.
Essa concepção consumista é o que existe na classe médica brasileira.
Os pobres do SUS, que teoricamente deveriam ter um atendimento paternalista tipo europeu, acabam tendo no médico um defensor para que tenha pelo menos a tecnologia do diagnóstico do modelo consumista.
No modelo brasileiro misto, paternalista para pobres e consumista para os convênios, o médico não se sente solidário com nenhum dos dois sistemas, isso porque ele não considera o paciente sua responsabilidade.
No Brasil somente 2% a 5% dos doentes têm condições de ter o mesmo médico por anos seguidos na mesma moléstia. O paciente do convênio acha que paga e tem direito de trocar de médico quando quiser, até achar algum que faça o que deseja. O médico sente essa tramitoriedade e não se compromete nem com o sistema nem com o paciente e assume a sua posição de técnico que procura a eficiência.
A sociedade em geral cobra do médico uma coerência de comportamento ético na relação indefinida entre médico-paciente-sistema de saúde. Felizmente, a Folha e Dimenstein estão abrindo os debates.

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