São Paulo, quarta-feira, 6 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Maluf retira o pão e mantém o circo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O automobilista paulistano, em especial o que mora no Morumbi ou nos bairros bons da zona sul, ganhou um espetacular brinquedo nos últimos dias.
Trata-se do túnel debaixo do rio Pinheiros. É uma beleza, sem dúvida.
Você se sente num mundo de ficção científica. Tudo é aerodinâmico e limpo. As luzes de magnésio mudam de cor. O teto se interrompe, com rápidas vigas vazadas. Há uma espécie de revestimento metálico.
A pista oscila de nível, a viagem sob o rio Pinheiros conhece ritmos e curvas, arrojos de surfista. No fim, o dono do Nissan ou do Subaru deve escolher: Morumbi ou Cidade Universitária? É como clicar um mouse de computador.
Esse rápido prazer custou US$ 187 milhões. O brinquedo é caro, certamente. Pontes novinhas em folha poderiam ser feitas a custo menor.
Mas quem, na administração malufista, está interessado em pontes, quando se pode fazer um belo túnel abaixo do rio?
A resposta é simples e decepcionante: o próprio Maluf, que oferece aos estetas da cidade uma nova ponte paralela à da Eusébio Matoso. Branca, iluminada, lança suas belas curvas de concreto sobre a água parada do rio. Sua construção pôde ser admirada por todos, até mesmos os que compõem a faixa carente de nossa comunidade.
Durante alguns meses, em meio a congestionamentos infernais, foi possível ver o progresso da obra: pertinaz, silencioso, planejado. As duas extremidades da ponte iam-se unindo pouco a pouco. O vão que as separava –metáfora, talvez, da distância entre as classes sociais– encurtou-se rapidamente, mal deixando ver os fios de ferro da estrutura de concreto, fibrilações medusinas, descabelamentos desesperados ante a iminente desaparição rumo às entranhas da obra inteiriça e perfeita.
Obra de Maluf. A designação triunfante também ornou as anônimas faixas –anônimas, isto é, sem signatário oficial– que celebravam a entrada em funcionamento da avenida Hélio Pellegrino.
Avenida das mais enigmáticas, resultado, creio, da canalização de um córrego, ligando a República do Líbano a um paredão urbano no Itaim, servindo para coisa nenhuma, avenida fantasma, onde ciclistas desafiam atropeladores.
Há um problema sério com relação a essas obras urbanas. Uma vez feitas, tornam-se objeto de admiração. O fato de terem sido imensamente caras, de ter havido opções mais racionais antes de construí-las, silencia face à grandeza do feito.
O túnel é lindo, assim como, digamos, o Memorial da América Latina ou o Centro Cultural São Paulo.
Administradores como Maluf, Jânio, ou tantos outros –Juscelino, Adhemar– beneficiam-se da visibilidade idiota de seus projetos.
Enquanto isso, sabe-se o quanto a administração Maluf tem piorado no que se refere a gastos com merenda escolar, assistência médica e educação. Sem contar com o aumento das passagens de ônibus.
Mas não há com que se preocupar: os ônibus não terão permissão de passar no túnel sob o rio Pinheiros.
É simplesmente odioso. É um verdadeiro absurdo.
Mas ninguém liga. O eleitorado pobre é o primeiro a embasbacar-se com a capacidade realizativa de seus governantes.
Há também o caso das desapropriações no Itaim. Uma nova via pública ligando a Faria Lima a não sei mais o quê. Casas pequenas, simpáticas, de classe média, serão derrubadas, começando em Pinheiros.
Gostaria de saber qual a porcentagem dos desapropriados que votaram em Maluf nas eleições. Deve ser grande.
Não importa. O que importa é uma cidade aerodinâmica, para automóveis, para glória do prefeito.
Obras. Muito modernas, por sinal.
Causou certa admiração, por outro lado, a desistência de Maluf em concorrer para a Presidência da República. De modo que essa pressa em fazer obras resultou ademais em vão.
Mas Maluf ganhou pontos ao desistir. Pela primeira vez em sua carreira, não teve a chatice mecânica, robótica, de apresentar-se como candidato. Foi vagamente humano nessa desistência.
Jorge Wilheim, em seu livro "Fax - Mensagens de um Futuro Próximo" (ed. Paz e Terra) imagina que só uma grande catástrofe poderá corrigir as concepções urbanísticas em vigor.
Ele supõe o advento de um Big Jam (Grande Congestionamento) em Los Angeles num futuro próximo. Coisa tão infernal, durando dias e dias, que as pessoas preferem abandonar seus carros. Impossível retirá-los do congestionamento. Melhor mudar de padrão –e Wilheim sugere postos em toda a parte para carros de aluguel, espécie de táxis individuais.
Mas Maluf é moderno, e encomenda túneis e pontes às empreiteiras.
Maravilha-nos.
Era, certamente, uma campanha eleitoral. E os eleitores, infelizmente, são tão estúpidos quanto parecem. Essas faixas "obrigado Maluf", que logo desaparecerão, são insulto à inteligência.
Mas há outros insultos.
Barros Munhoz, por exemplo. Foi ministro da Agricultura durante um mês e pouco. Azarou-se quando Fleury "rompeu" com Itamar. Teve de abandonar o cargo.
O eleitor paulistano vê, entretanto, outdoors fantásticos. A figura de Barros Munhoz aparece neles. Os cartazes dizem qualquer coisa como "obrigado, Barros Munhoz". Pois, em 40 e poucos dias de ministério, ele foi capaz de garantir uma safra recorde na agricultura nacional.
Ah, sim. Foi ele. Acredite se quiser. Se, em menos de um mês, foi capaz disso, imaginem-no no governo de São Paulo. Por que não se lançar para presidente de uma vez por todas?
Não engulo também a propaganda de José Dirceu para governador. No mês passado, outdoors davam-nos ciência do transcurso de seu aniversário natalício. "Parabéns Zé Dirceu".
Francamente, eu só tinha visto coisa parecida no livro de Maurice Duverger sobre os partidos políticos. Reproduzia-se ali uma ficha de filiação ao PC francês. O signatário dizia: "Sim! No dia do teu aniversário, caro Maurice Thorez (era o chefe do PCF na época) filio-me ao partido!".
Por que diabos festejar o aniversário de Zé Dirceu? Que culto à personalidade é esse?
Enquanto ele sopra velinhas, e Barros Munhoz comemora sua breve mas marcante passagem pelo ministério da Agricultura, Maluf expõe o túnel sob o rio Pinheiros como obra de estadista. Expõe sua renúncia à candidatura presidencial como obra de estadista.
Seu esforço de destruição urbana apenas começa no Itaim. Suas obras estúpidas, caríssimas, embasbacantes são inauguradas. A maioria gosta. Ainda que não seja candidato a nada, Maluf prova que apostar na burrice, a curto, médio ou longo prazo, é sempre bom negócio.

Texto Anterior: Anos 70 reciclam sertão e morro
Próximo Texto: Batman retorna em gibi e desenho animado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.