São Paulo, sexta-feira, 8 de abril de 1994
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Idade da inocência dura menos que parece

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Caso horrível o dessa escola que usava alunos de quatro anos para a realização de filmes pornô. Pelo menos é o que se noticia: a escola já foi depredada, gente foi presa e, afinal de contas, não é nada implausível que ocorram fatos desse tipo no vasto e estranho mundo em que vivemos.
Quatro anos de idade! E já participando à força do mundo pornográfico... É bem chocante. Ao mesmo tempo, caberia pensar um pouco mais serenamente sobre o assunto. Digo, o de uso e abuso sexual dos menores de idade.
Há algum tempo, divulgou-se a história de um sujeito, bancário, se não me falha a memória, interessado em garotos. Ele tinha uma lista, um diário, relatando suas conquistas em shopping-centers.
Também se fez muito barulho em torno da seita dos Meninos de Deus. Orgias em nome de Jesus Cristo se realizavam, conforme o noticiário, nos lares coletivos –nas comunidades– orientadas por essa religião. Havia mesmo cartilhas, mostrando Cristo como uma espécie de "latin lover".
São casos espantosos, não há dúvida. Mas nada é tão simples quanto pareça, e há muito moralismo em torno das questões desse tipo. O bancário que colecionava adolescentes foi caracterizado como um "monstro". Será mesmo? Tudo depende, eu diria, do consentimento das supostas vítimas. Uma coisa é estupro, ou o uso comercial da ignorância infantil, tal como parece ter ocorrido na escolinha atualmente em foco.
Outra coisa é a sedução, ou melhor, a persuasão sem violência. Ter menos de 18 anos não é sinônimo de ser inocente. Um garoto de 14 ou 15 sabe muito bem, na maioria dos casos, proteger-se de homossexuais se quiser.
Desconfio um pouco das acusações que se fizeram contra esse sujeito, que mantinha o diário de suas conquistas pedófilas. É um pouco como o caso Mike Tyson. O boxeador foi condenado por estupro. Mas tinha convidado a modelo para entrar no seu quarto de hotel, ela foi. Sentou-a no colo, ela sentou. Depois, sem testemunhas, há queixa de estupro e condenação.
Tendo a ver em tudo isso uma exacerbação moralista, uma espécie de horror ao sexo, facilitando todo tipo de anátemas e procedimentos penais.
Ah, mas quando se trata de crianças...
Concordo. No caso da escola, crianças de quatro anos sofreram evidente abuso. Mas há uma mania de considerar "crianças" marmanjos de 16 ou 17 anos. Não raro os jornais noticiam o assassinato –odioso, claro– de "crianças" ou "meninos" de rua: e quando você vai ver, não são crianças coisa nenhuma: menores de idade, mas bem grandes. Seria preciso acabar com uma série de hipocrisias.
A primeira é a de julgar um monstro o sujeito que seduz (mas, repito, não estupra) adolescentes de 14 anos ou mais. De qual inocência, afinal de contas, o sujeito está se aproveitando quando trata de convidar para o motel ou para o apartamento gente dessa idade?
A segunda é muito mais séria. Refere-se à questão da sexualidade. Com que idade, afinal, a sexualidade oficialmente se inicia? Com que idade é lícito que ela se manifeste e, em última análise, com que idade é "moral" que ela seja explorada comercialmente?
No século passado, meninas de 13 ou 14 anos se casavam e tinham filhos com mandriões de 40. Não que essa situação fosse admirável. Mas é só para notar o quanto mudam através dos tempos os critérios de maturidade sexual.
Avanço mais um passo. Nada conheço da seita Meninos de Deus. Há histórias sobre a coerção ao sexo, exercida sobre crianças.
Muito bem. Coerção é ruim e, se houve, temos de condená-la. Mas me ocorre a seguinte pergunta. É brutal.
Que diferença existe, em termos morais, entre uma religião que esconjura o prazer sexual –a católica– e uma religião que celebra o prazer sexual? Não há violência –gigantesca– numa religião que proíbe o sexo antes do casamento?
Se uma seita inventa o sexo infantil, como parece ser o caso dos Meninos de Deus, tudo parece aberração e tara. Mas, se uma religião instituída, como a católica, suprime o sexo, ninguém vê loucura nenhuma nessa tradição.
Entretanto, essa violência católica contra a sexualidade humana produziu loucuras sem fim. Surtos de histeria. Perseguições às bruxas. Basta ler "Os Demônios de Ludlun", onde Aldous Huxley conta as consequências horrendas de um caso de possessão demoníaca entre freiras, as quais só precisavam, para curar-se, de um pouco de atividade sexual.
Chega então, de moralismos. Adolescentes e crianças querem sexo. Sabem perfeitamente de seus potenciais de sedução. Pode-se discordar, dizendo: ah, mas crianças e adolescentes não têm maturidade... não sabem o que fazem, não dispõem de experiência e de conhecimento bastantes para discernir entre propostas sexuais desonestas e propostas honestas...
Mas, convenhamos, nenhuma maturidade, nenhuma experiência evita alguém de cair em arapucas. Todas as certezas amorosas do mundo correm o risco de desaparecer depois da primeira noite. O cidadão ou cidadã mais lúcido ou lúcida pode ser enganado com promessas de terceira categoria. Cede sexualmente porque quis se enganar. Mentira e sedução, sexo e consentimento, engano e auto-engano, são indissociáveis geralmente.
Que importa, então, ter 40 ou 15 anos? A maturidade e a experiência têm pouco a ver com o desejo. A inocência de um adolescente é fictícia.
O único critério, a meu ver, da condenação, no caso de "abuso de menores", é o da violência. Caso não exista violência, estupro, nada há de basicamente imoral em casos desse tipo.
No exemplo da escola, onde crianças de quatro anos teriam sido abusadas, a coisa é mais chocante e muda de figura. Pois há violência automática no fato de se usar pessoas que nem sabem o que estão fazendo. É abuso. Mas cabe pensar, nos outros casos, quanto não estamos abusando do conceito de abuso. E quanto, por moralismo, não estamos negando a realidade imensa e obscura do sexo.

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