São Paulo, sexta-feira, 8 de abril de 1994
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Quem usaria roupa branca?

MIGUEL SROUGI

Recentemente, Gilberto Dimenstein denunciou vários desvios de conduta médica, que ganharam grande repercussão dada a lucidez que sempre caracterizou esse jornalista.
Entre outras coisas, e tomando como exemplo a impunidade de um ginecologista envolvido em possíveis práticas criminosas, queixou-se do corporativismo dos conselhos regionais de medicina, comparou a classe médica com a dos políticos patrícios e reclamou do lobby dos oftalmologistas que prejudica populações mais carentes.
Também recriminou os médicos por cobrarem "por fora" dos pacientes previdenciários e por inventarem operações para fraudar o Inamps, concluindo que se os médicos fossem investigados, poucos se atreveriam a andar de branco nas ruas.
Mesmo reconhecendo a propriedade de algumas dessas denúncias, parece-me exagerado culpar exclusivamente a classe médica pela sua ocorrência e imaginar que uma fiscalização ou a punição rigorosa eliminariam tais desvios. De qualquer forma, os episódios denunciados, mais do que análises emocionadas ou respostas específicas, merecem algumas reflexões.
Em primeiro lugar, é importante que se compreenda que nenhum médico bem formado aceita transgressões éticas e morais por parte de seus colegas. Ainda mais se elas atingem os limites da criminalidade.
Exigir, contudo, que médicos ou seus conselhos regionais assumam toda responsabilidade punitiva nesses casos é absolutamente irreal e não leva em consideração as características pessoais e humanísticas da maioria desses profissionais.
Crimes devem ser julgados e castigados pelo Estado, que tem leis e pessoas qualificadas para tanto, não exatamente pelos médicos, que pela natureza de sua formação não gostam e não sabem como exercer qualquer papel repressor.
Em segundo lugar, é provável que algumas das distorções relatadas resultem não apenas de incorreções médicas, mas da posição absolutamente permissiva da nossa sociedade.
Todos estimulam e se rejubilam com a instalação de novas escolas de medicina, envolvidos pela idéia falaciosa de que estão se criando maiores oportunidades para os jovens. A proliferação dessas escolas no Brasil, comandada apenas por interesses políticos e vaidade, gerou centros com cursos e treinamento obviamente deficientes. Como resultado, um número indesejável de profissionais pouco preparados é lançado no mercado, com todas as consequências negativas previsíveis.
Ademais, a nossa sociedade sempre adotou uma posição de exagerada condescendência frente a atuação desinibida de elementos não-qualificados na área da saúde, ingênuos ou místicos bem-intencionados e charlatães fabricam ilusões e produzem tragédias talvez em número maior do que as causadas por erros médicos.
Dentro desse contexto, pode-se entender um pouco do desconforto que oftalmologistas sérios sentem ao se discutir a livre prescrição de óculos e lentes. O que acontecerá no Brasil se a venda destes produtos for liberada?
Pode ser que as classes menos favorecidas sejam beneficiadas com o acesso mais simples aos mesmos. Mas elas mesmas, sem descortino, poderão ser ludibriadas pela massa de espertalhões e charlatães que grassam em nosso meio.
Em países mais desenvolvidos, e com justificado bom senso, óculos são vendidos livremente, mas a sociedade tem mecanismos eficientes para coibir e punir a ação de eventuais aproveitadores.
Em terceiro lugar, como exigir que os médicos exerçam condignamente sua profissão quando todos os instrumentos para isso lhes tem sido subtraídos?
Os nossos governantes, com felizes exceções, transformaram a saúde em balcão de negócios escusos e de trocas de favores pessoais, destruindo a promissora estrutura médico-hospitalar edificada entre os anos 40 e 60.
Os salários do pessoal da área foram aviltados e atualmente só idealistas ou incapazes sujeitam-se a trabalhar em serviços públicos. Só para exemplificar, o salário básico de um médico do Inamps em fevereiro último foi de CR$ 176.061,43.
Como exigir que esse profissional deixe de ter três ou quatro empregos, trabalhando até a exaustão, que se mantenha atualizado, quando um livro médico custa entre 100 e 300 dólares, ou quando qualquer participação em congresso ou curso de aperfeiçoamento tem de ser paga pelo próprio médico?
Essa situação torna-se mais alarmante se lembrarmos que cerca de 95% dos médicos brasileiros são assalariados, prestando serviços à entidades e empresas de assistência médica privadas. Com uma frequência além do desejável, esses profissionais recebem seus proventos aviltados por tabelas infames, com dois, três ou quatro meses de atraso.
Aliás, são em geral esses agenciadores, e não os médicos propriamente dito, que fraudam contas hospitalares, cobrando cirurgias de fimose em mulheres ou partos em homens.
E o que dizer da situação cruel enfrentada pelos médicos, obrigados a clinicar em hospitais públicos caóticos, onde escasseiam desde esparadrapos até medicamentos mais simples, onde o chão representa o único local seguro e disponível para o repouso e onde um paciente com câncer espera até cinco ou seis meses para ser internado, se sobreviver?
Mal comparando, o funcionamento dos hospitais públicos no Brasil assemelha-se, atualmente, ao vôo de um quadrimotor com apenas um motor funcionando... e falhando. Com médicos assustados sendo obrigados a pilotar o avião e recebendo a culpa por cada corpo que despenca.
Finalmente, o que dizer das condições de indigência a que foi levada a população brasileira? Além de consumir talento médico, essa situação exaure os parcos recursos disponíveis, que são empenhados no tratamento de doenças já erradicadas em países sérios.
Mais do que isso e nesse contexto, é fácil compreender por que um médico aceita a solicitação de um paciente, desamparado pelo Estado e desejoso de escolher seu doutor, para que sua internação hospitalar seja feita pelo Inamps e os honorários pagos à parte, independente de se julgá-los corretos ou não, é esta a causa mais comum (e não ganância médica) dos chamados "pagamentos por fora".
Todas essas reflexões não visam isentar os médicos de suas faltas, que certamente ocorrem e devem ser denunciadas. Contudo, é importante que se compreenda que os drs. João Mineiro, José Paulista, Sebastião Baiano, ou Antonio Pernambucano, que dedicam suas vidas e emoções para aliviar o sofrimento alheio, também são vítimas da combinação perversa de uma sociedade complacente com governos indecentes.
E não tenho dúvida que a quase totalidade do povo brasileiro se orgulha de seus verdadeiros médicos. Diria até mais, dos 150 milhões de brasileiros, 149.999.999 adorariam sair de branco nas ruas para homenagear estes profissionais. E tenho certeza que Gilberto, na sua clarividência, se investigar a vida da maioria dos médicos brasileiros, também vestirá sua roupa branca.

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