São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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O fascismo de mercado em nome de Deus

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os que defendem a possibilidade de o Plano FHC ser levado a bom termo, isto é, terminar com o real ancorado no dólar, devem estar seriamente preocupados com a mudança da conjuntura do mercado internacional.
Eu, pelo contrário, começo a achar novamente que Deus é brasileiro e pode nos salvar de um verdadeiro desastre que seria amarrar a nossa moeda com uma sobrevalorização cambial considerável.
Lastrear a moeda no dólar a partir das nossas reservas baseadas em grande parte em capital especulativo de curto prazo é uma aventura que só o México, cujo emprestador de última instância é o governo americano, permitiu-se.
Falo no passado, já que no presente e no futuro há dúvidas seríssimas sobre se o mercado de capitais mexicano resistirá a um endividamento de curto prazo de cerca de US$ 50 bilhões, mesmo quando o terceiro "lastro" da moeda mexicana sejam as reservas de petróleo e não as reservas monetárias do Banco Central.
A elevação da taxa de juros americana e os riscos dos mercados latino-americanos "emergentes", sobretudo México, Argentina e Brasil, estão revertendo os fluxos de capitais financeiros, que começam a retornar ao próprio mercado norte-americano.
Assim, se perdermos em média US$ 1 bilhão por mês daqui até o fim do ano (aparentemente, já perdemos US$ 700 milhões só em março) poderemos abater US$ 10 bilhões do total da dívida pública mobiliária interna.
Isto talvez diminua a pressão sobre o mercado primário de títulos e enxugue a liquidez do mercado secundário sem necessidade de escalar ainda mais a taxa de juros.
Se, no entanto, a direção do Banco Central se apavorar e resolver subir ainda mais os juros para tentar evitar a fuga de capital especulativo, então a economia dos juros não ocorrerá, o que não impedirá, do mesmo modo, a perda das reservas fictícias.
A propósito, ministro Ricupero, com todo o respeito ao seu elevado espírito público, não convém fazer afirmações do estilo "é proibido gastar", que só podem dar lugar a comentários sarcásticos de economistas ilustres, como o ex-ministro Delfim Netto, na confortável cadeira de oposição.
É evidente que o governo desta infeliz república não pode gastar, nem que queira, já quem não tem Orçamento aprovado e tem uma conta diária de juros que absorve as disponibilidades correntes de caixa do Tesouro.
A preocupação com o social dos tucanos não leva a lugar nenhum e pode converter-se num duplo estelionato, intelectual e eleitoral, sem que as parcas verbas para o povo cheguem a seu destino.
Não por furto ou desvio para os seus bolsos, porque os nossos homens de mãos limpas não podem ser acusados disso, mas porque só migalhas foram destinadas à saúde: caíram de US$ 90 por habitante para US$ 40 no governo Collor, e foram estimadas no primeiro Orçamento (primeira parte do Plano FHC) em apenas US$ 20.
O que torna a situação mais dantesca e faz o "Deus e o Diabo na Terra do Sol" parecer filme açucarado, é que o Fundo Social de Emergência do Plano FHC, estimado em cerca de US$ 10 bilhões, não dá nem para pagar a conta de juros adicionais provocada pela política monetária dos respeitáveis homens do BC.
Assim, enquanto Betinho é obrigado a pedir desculpas publicamente por ter aceitado US$ 40 mil dos banqueiros do bicho para salvar os aidéticos da incúria do sistema de saúde em ruínas, os nossos "homens de bem" não são obrigados a pedir desculpas pelos US$ 20 bilhões que pagarão voluntariamente aos banqueiros verdadeiros. Estes, naturalmente, ganham o seu dinheiro com um trabalho "honesto" e legal, e disso se gabam diariamente.
O nosso atual ministro pode, sem nenhuma falácia, acreditar profundamente em Deus. Por isso mesmo, não deve acreditar nos economistas do governo e deve prestar atenção aos da oposição, quer eles se chamem Delfim Netto ou esta sua modesta opositora.
Reconheço, sr. ministro, o caráter dramático de sua situação, que é a imagem invertida das desgraças que afligem este país. Tem de governar com os homens da situação e não com os economistas da oposição. Tem que tentar salvar o plano do seu antecessor, mas, por favor, não agrave a sua própria crucificação nem a nossa, pedindo ao Betinho que apóie o plano de estabilização que querem impingir a esta nação.
O Betinho não fará isto, tenho a certeza, por que esses erros políticos ele nunca fez nem fará, em respeito, não à sua vida passada que não precisa ser resgatada, mas ao futuro dos miseráveis deste país, cuja causa ele abraçou de mil maneiras e leva em seu sangue.
Os ministros da Fazenda deste pobre governo parecem não ter o poder ou a vontade de pagar um salário mínimo de US$ 100, porque não quiseram ou não puderam desvinculá-lo do piso da Previdência, mas não nos peçam que apoiemos essa decisão "sábia e justa", que podia ter sido corrigida na segunda versão da MP 434.
Os católicos têm uma vantagem sobre os judeus, a de nunca se sentirem obrigados a reconhecer o seu passado. Depois de 40 anos podem celebrar o Holocausto na basílica de São Pedro sem ter de reconhecer publicamente, como Malraux, que naquela época o demônio estava sobre o mundo e nem a Igreja de Roma e muito menos a minha, a portuguesa, e a espanhola, reconheceram a necessidade de apoiar os judeus.
Os economistas liberais deste fim de século parecem ora a seita da Inquisição, que obrigou os meus antepassados a se converterem em cristãos novos, ora os mentores deste fenômeno monstruoso e difuso que Samuelson chamou "fascismo de mercado".
Pelas obras os julgarás, diz a Bíblia da minha infância, os padres de esquerda da minha adolescência e os fiéis do povo de Deus da minha velhice.
Não tenho a ironia de um Swift nem posso adotar o sarcasmo do meu ex-adversário Delfim Netto, mas posso recomendar aos católicos deste país a leitura de alguns livros de Saramago, do "Evangelho Segundo Jesus Cristo" ao "In Nomine Dei".
Peço também aos que acreditam em "homens cordiais", de cuja imagem o candidato FHC seria a perfeita reprodução, que leiam Sérgio Buarque de Hollanda para ver qual o significado verdadeiro do "homem cordial" brasileiro.
Evidentemente, o candidato não é pessoalmente nenhum Berlusconi, já que não é proprietário das mais importantes redes de televisão do país nem de clubes de futebol, mas a sua aliança pela direita não deixa nada a dever à das eleições italianas em matéria de pesos pesados. Apenas os resultados eleitorais são menos previsíveis aqui do que na Itália.
Os tucanos sempre obtiveram o seu sucesso intelectual por se colocarem em cima do muro. Infelizmente para eles e felizmente para o Brasil o nosso muro interno está ruindo e a imagem do "muro de Berlim" não lhes é mais favorável, dada a situação atual da Alemanha e da Itália.
Além disso, os nossos barbudos locais nunca tiveram nada a ver com o muro, nem com o de Berlim, muito menos com o nosso e parecem decididos a combater o "apartheid" social provocado pelas duas moedas (a dos ricos e a dos pobres), coisa que está longe de acontecer com os admiráveis liberais de boa família instalados no poder desta infeliz república.
Senhores da situação que já desceram do muro pela direita, espero que a história próxima os julgue como merecem.
Senhores da situação que ainda não desceram do muro e tentam se iludir com as imagens dos homens de bem, que Deus tenha piedade de vocês e de nós todos e nos livre da tentação, agora e na hora da nossa morte. Amém.

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