São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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UM CANTO DE AMOR SEMÍTICO

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sobre o "Cântico dos Cânticos", "Cantar dos Cantares", ou, em hebraico, "Shir Hashshirim", multiplicam-se em filigrana, no tempo, as interpretações. Literalmente, trata-se de um poema de amor semítico, um conjunto de cantos eróticos, talvez com função de epitalâmio, sobre cuja superfície textual, tradicionalmente, enredam-se, sutis, as exegeses alegóricas.
Desde a que o vê como a celebração do amor de Elohim por Israel e seu povo (no campo hebraico-rabínico), ou, correlatamente (no domínio cristão), do amor de Cristo pela Igreja e pela cristandade, até aquela que, em pauta antropológico-cultural, o interpreta como uma transposição judia do culto ritual da fertilidade (Tamuz-Adôniz, o deus que ressucita).
Quanto a esse "poema dos poemas", cuja redação remonta a algum momento entre os séculos 5 e 4 anteriores a nossa era, costuma ser lembrada a opnião apologética do Rabi. Akivá, ardoroso defensor de sua integração ao cânone da Bíblia Hebraica, definido no século 90 d.C., para a qual também contribuiu a atribuição - hoje não mais sustentável - de sua autoria no rei Salomão, sábio entre os sábios e voluptuoso senhor de um legendário harém.
Afirmava o Rabi Akivá, em prol da canonicidade e, pois, da sacralidade do texto: "O mundo inteiro não vale o dia no qual o 'Cântico dos Cânticos' foi dado a Israel, porque todas as Escrituras são santas, mas o 'Cântico dos Cânticos' é santíssimo'."

As Escrituras são santas, mas o Cântico é santíssimo', dizia Akivá

Traduções sapientes, de escopo hermenêutico, de cunho teológico ou laico, têm também proliferado, até o presente. Nesta breve introdução, quero referir-me apenas a duas recentíssimas. No âmbito italiano, em 1992, Giovanni Garbini, professor catedrático de filologia semítica na Universidade de Roma, publicou, pela Editora Paideia, de Brescia, um erudito volume contendo uma nova tradução do Cântico.
Após examinar comparativamente o texto hebraico fixado pelos massoretas (TM), o chamado "fragmento de Qumran"(50 d.C), as versões gregas (em especial a dos Setenta e a de Áquila), as versões latinas (Vetus Latina e a Vulata de S.Jerônimo), a versão siríaca, o autor propõe-se reconstruir o texto, que teria sido submetido a uma "continua reelaboração até o século 10 d.C", longo processo cujo escopo estaria em "atenuar ou eliminar as referências mais descobertamente eróticas e as alusões ao mundo helenístico", para favorecer uma leitura alegórica apoiada em referências salomônicas, ou equivalentes.
No Brasil, sempre nesse plano de exegese sapiente, foi, em 1993, editada pela Loyola (Coleção Bíblica, nº 11) uma tradução minuciosamente comentada do "Cântico", de lavra de I. L. Stadelmann, S. J. Seu propósito, através de uma articulada e erudita argumentação, consiste em desenvolver uma leitura que manifeste a real intenção do texto. Esta, de acordo com seu contexto de época, teria sido, segundo o tradutor e hermeneuta: "apresentar em linguagem poética o plano de ação para a integração social de judeus repatriados e autóctones na comunidade pós-exílica".
No que respeita ao plano literário, temos em vernáculo tentativas várias, desde a do poeta português João de Deus (1830-1895), cultor de um romantismo ingênuo, que produziu uma "versão soporífera", na opnião de Jamil Almansur Haddad.
O próprio Jamil, poeta copioso, pretendeu por seu turno fazer uma versão "estabilizando a poesia por vezes desconexa deste livro sagrado", mas o que resulta é uma leitura edulcorada do texto hebraico, como sacarinosa é a versão em prosa do retórico Augusto Frederico Schmidt. essas traduções, feitas direta ou indiretamente através do latim da Vulgata, amaciam, em diferentes graus o açucaramento, o "Cântico dos Cânticos", dando-lhe um tratamento que não corresponde ao agreste lirismo do original.
Ao invés, tem interesse literário o trabalho de Fiama Hesse Pais Brandão (Cântico Maior, 1985), poeta portuguesa que procurou extrair, de várias versões e glosas do original hebraico, um texto cumulativo, em palimpsesto, que desemboca, por vezes, numa semântica aleatória e quase surreal, simultaneísta: uma "colagem" antes do que uma tradução.
No campo internacional, e para só falar da produção recente com preocupações literárias, podemos mencionar, em alemão, a tradução de Martin Buber ("Gesangder Gesänge"), de escopo teológico e filosófico, mas dotada de um bem definido projeto estético de restituição da oralidade (Gerprochenheit) do original. Em italiano, "Il Cantico dei Cantici", de Guido Ceronetti, em dísticos e tercetos límpidos, de concisão e eficácia ungarettianas.
Em francês, cabe citar a versão de André Chouraqui ("Le Poéme des Poèmes"), com preocupações etimológicas e pendor arcaizante, e a de Henri Meschonnic ("Le Chant des Chants"), mais rigorosa e consequente, animada por um intento de restituir a prosódia e o ritmo de língua viva do original, em polêmica aberta com a de Chouraqui.
Ao cabo da "trans-criação" do Canto 1 do poema, o resultado me fez pensar que, em português, o que há de mais próximo em afinação sensível em relação ao original; mais próximo em dicção, com seus paralelismos, suas repetições e até na paronomásia de base consonantal ("as SEREIAS anunciarão as SEARAS"), o que há de mais próximo do que qualquer das versões explícitas do "Shir Hashshirim" em nossa língua, em relação à força e à beleza do original hebraico, é o "Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão" de Oswald de Andrade, que náo é tradução nem paráfrase, mas que brotou de uma congenialidade lírica, de uma voz ao mesmo tempo despojada e cantante, de timbre afim (embora Oswald, que talvez tenha lido o poema hebreu na versão sensaborona do Pe. Antonio Pereira de Figueiredo, por via da Vulgata latina, jamais pudesse ter imaginado uma convergência desse nível, que me permito prazerosamente constatar à sua revelia...).
Nesse meu trabalho de "trans-criação"revela ainda referir que continuei usando o sistema de marcar com espacejamento e signos especiais ( ) a incidência dos acentos disjuntivos assinalados no texto massorético por neumas (os te'amim), sobre os quais chamou a atenção Henri Meschonnic, por sua importância quanto ao recorte rítmico-prosódico do poema. Por outro lado, disseminei assonâncias, aliterações, paronomásias (no sentido de Saussure e Jakobson), rimas ou quase-rimas em eco, para de algum modo, corresponder à habilíssima orquestração fônica do original hebraico.

Finalmente, fiz escolhas lexicais que, em alguns momentos, "citam" fórmulas expressivas de nossa lírica, do "leito de folhas verdes", de Gonçalves Dias ao epíteto "beleza pura" de Caetano Veloso; esta última solução muito adequada, em meu modo de ver, para exprimir o sentido do adjetivo "na'vá" em hebraico, entre "bela" e "graciosa", aplicado, como na letra de Caetano, a uma beleza sem afetação, em estado natural, espontânea, caso da pastora do Cântico, amorenada pelo sol.
Note-se, já neste primeiro Cantar, a estrutura ora monologante, ora dialogante, com variações pronominiais de tratamento que passam sem preocupação lógica da primeira para a terceira pessoa e desta para aquela, com disjunção de vozes (uma feminina, apresentada ora como guardiã de vinhas, ora como pastora, e outra masculina, do amante respondendo à sua amada, ora um pastor, ora um rei).
Essas "bruscas transições", como as denomina o Pe. Buzy, S.C.J., "são familiares ao Cântico". Igualmente o são as caracterizações fugidias, só na aparência contraditórias, que percorrem o poema. Diz Buzy: "Esses qualificativos encantadores acodem ao apelo do poeta; dão seu perfume e sua cintilação, e passam, dando lugar a outras cintilações e outros perfumes."
Um último apontamento: traduzi "eshkkol hakkófer" por "racimo de ciprus", o que me permitiu um jogo aliterante (RaCimo/CipRus) além de uma quase-rima em eco (racIMo / MIM e, como apoio, vINha). O ciprus, também chamado alfena, não se confunde com as uvas. Trata-se de bagas odoríferas, de cor amarela, que brotam em "racimos" ou "cachos", por vezes adicionadas ao vinho para lhe acrescer cor e aroma.

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