São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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DILEMA

O jacaretinga estremeceu, rabeou, descaiu o focinho ferido

MILTON HATOUM
ESPECIAL PARA FOLHA

No último domingo, antes de voltar para casa, ele viu o barco passar perto da margem. O mesmo barco vermelho de outros domingos, a mesma mulher sentada na proa, para quem ele fizera um aceno. Havia um quê de desespero no seu gesto. A mulher de branco não respondera, apenas levantara a cabeça para o alto da colina. O vento agitara-lhe os cabelos. Ele não pôde fixar os traços do rosto dela: o barco vermelho continuou a navegar rumo ao encontro dos rios... Ainda era dia, quando ele voltou ao bairro próximo da zona industrial. Caminhou diante das fábricas silenciosas, os portões fechados, vigiados por homens armados.
Ao entrar no bairro, evitou caminhar à margem do igarapé. No descampado os vizinhos jogavam bola, e ele imaginou a cena noturna dos outros domingos, como uma repetição enfadonha.
No descampado os homens gritavam, bebiam, se insultavam. E caíam. Havia duelos. Os mais fracos dormiam no lodo que aflorava aqui e ali. Na boca da noite os urubus saltitavam ao redor dos corpos; os mais afoitos, empoleirados nas trevas, abriam as asas, voavam. Era uma cena que se repetia, sempre aos domingos. Justo Calisto olhava para os vizinhos correndo no descampado e os imaginava caídos, vencidos. Não falou com os vizinhos, entrou na palafita calado, deu aos dois pássaros engaiolados pedaços de banana; um outro pássaro, avermelhado, pousou na ombreira da janela, perto da rede. Um vento morno crispou a água suja do igarapé. Vai chover, pensou. Pouco depois, o toró desabou. Este é o inverno: chuva ruidosa, chuva-canivete. Vinte invernos de vinte anos neste bairro, nesta palafita. Quando chove assim, o descampado torna-se uma lagoa, o igarapé transborda. Na casa vizinha, ele ouviu os sons de uma televisão, um chiado que se soma ao ruído da chuva. Ouviu também gritos de crianças, choro de crianças. Logo logo, a água se infiltrará no assoalho da casa. Justo Calisto deita-se na rede da varandinha da palafita e espera a chuva passar, espera o domingo escurecer e ir embora, como alguém que detesta este dia. E quando estiou, o som da televisão apagou-se, as crianças calaram, mas logo uma assuada na vizinhança cortou o silêncio do entardecer. Ele viu uma roda de gente agitada. Dois homens que retornavam do descampado puxaram um bicho da beira do igarapé. O jacaretinga se contorceu, enlameado, desfigurado, as mandíbulas presas por um pedaço de arame farpado. Um dos homens cacetou-lhe a cabeça; o outro furou-lhe os olhos com uma antena enferrujada. Alguém acendeu uma lamparina: os olhos de brasa assomaram, vermelhos, olhos quase mortos. O jacaretinga estremeceu, rabeou, descaiu o focinho ferido. A lâmina de um terçado abriu-lhe o ventre, a mesma lâmina decepou-lhe o rabo. Justo Calisto encarou os dois matadores.
Nesses atos tentamos esquecer nossos crimes, pensou. Um homem baixo e franzino cortou a cabeça do réptil, lançou-a no igarapé, e soltou um guincho de triunfo. A terra molhada embebeu a poça de sangue. Os outros homens fecharam a cara, se afastaram, sumiram. Justo Calisto voltou à varandinha. Deitado na rede, esperou o sono, esperou o próximo fim-de-semana...

No começo da tarde deste domingo, ele abriu a gaiola: os dois pássaros voaram na mesma direção. Enrolou a rede em que dormira mais de vinte anos e saiu de casa. Percorreu a pé o caminho que o separava da beira do rio. Agora, no alto da colina, ele pensa no que vai acontecer, no que pode acontecer...
Ao divisar o barco vermelho, ele desceu a colina e aproximou-se da canoa. Mais perto dele, mais perto da margem, o barco diminuiu a marcha e parou. Então ele viu o rosto da mulher, e quase ao mesmo tempo leu o nome de um rio na quilha vermelha, o rio em que ele nascera. Justo Calisto teve a impressão de que esta seria a última viagem, a última passagem do barco vermelho... Ele não acenou para a mulher.
No interior da cabine, um velho segurava o timão. Agora, sob o sol fraco do entardecer, o rio parecia mais vasto, a água mais escura e espessa. O silêncio envolveu a atmosfera de mais um domingo que findava. Justo Calisto entrou na canoa e começou a remar, lentamente, rumo ao barco. Ele olhou para trás e viu as fábricas, diminuídas pela distância. Quando a canoa ingressou na sombra do barco, ele parou de remar e jogou o remo no rio. Depois, ele e a mulher viram a canoa afastar-se. O banzeiro conduziu-a à margem do rio.

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