São Paulo, domingo, 10 de abril de 1994
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CAFÉ DAS FLORES

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando estacionei o carro junto à calçada em frente ao Café das Flores vi que ela estava esperando em pé debaixo do toldo de lona. O rosto era o mesmo daquele mês de outono crespo e frio como as rugas que desciam em cortes de navalha até a boca franzida num dos lados. Para ganhar tempo pisei no acelerador antes de desligar a chave de contato, subi os vidros laterais e ao pôr o pé na pista examinei as poças d'água nas fendas do asfalto. Subi à calçada medindo os passos e só enfrentei o olhar dela depois de ajustar o boné azul que combina com o meu suéter de lã. O rosto continuava empinado sobre duas estacas e a bolsa de couro a tiracolo balançava na altura dos quadris amassados nas calças jeans. À primeira vista o que mais chamava a atenção eram os olhos de borracha refletindo nas órbitas o neón vermelho do Café. Antes de cumprimentá-la apontei para a mesa vazia perto de uma janela de vidro que abre para o movimento da rua. Ela entendeu o sinal mas se dirigiu a outra mesa no canto da sala; desinteressado em argumentar segui-a e sentei-me à sua frente na cadeira de ferro batido. É possível que tenha passado muito tempo sem que alguém dissesse alguma coisa –o garçom de peito engomado empalidecia o silêncio trazendo os cardápios. Ela desviou a mira da minha barba escanhoada e pediu um expresso curto; animado pela idéia escolhi um café carioca com espuma de leite. Não há dúvida de que estávamos concentrados pois ficamos segurando o cardápio até as xícaras pousarem no tampo de mármore junto com a açucareiro. Tenho a impressão de que foi ela quem começou a falar porque fui o primeiro a sentir as pálpebras picadas pelos espinhos que vinham dos lábios curvados em forma de arco. Passei o lenço nos olhos convencido de que não podia perder o bom humor por uma ninharia. Acredito que essa inércia atiçou suas energias uma vez que os arrebites de aço zuniram no ar e traçaram o "x" que ia da ponta das minhas sobrancelhas às extremidades do maxilar. Pode ser que nesse instante eu a tenha levado a sério protegendo com o guardanapo o alvo mais vulnerável das retinas. Ainda assim consegui vislumbrar grupos de adolescentes que numa travessa próxima travavam uma batalha de "tchacos" e estiletes. A cena não interrompia o curso das coisas na mesa de café que agora ganhava em nervo e intensidade. Foi estimulada por isso que ela abriu o zíper da bolsa a tiracolo e sacou do fundo uma sevilhana nova em folha. A lâmina cintilou na minha direção embora eu não julgasse o queixo rombudo compatível com a arma proibida no bairro. De qualquer modo para mim não havia o que fazer senão levantar os braços e receber os talhos nos punhos para evitar um mal maior. Estava à mercê dos acontecimentos e essa circunstância exigia um sentido de adequação que as palavras eram incapazes de garantir. Reconheço que ele foi o único a livrar minha carótida de algum risco fatal: erra quem imagina poder aplacar com paliativos a fome de uma fúria. As asas que subiam dos cabelos de cobre confirmavam a apreensão: em rápida sequência elas me derrubaram da cadeira, recobraram o ímpeto voando para o teto e depois se abateram a prumo sobre o peito e o baixo-ventre. Só escapei ao sacrifício invocando os bons momentos que havíamos passado em épocas remotas e recentes nos cômodos mais resguardados. O intervalo de memória permitiu que eu saltasse do chão, pusesse a cadeira em pé e pedisse ao garçom outro café carioca com espuma de leite. Senti que o líquido escorria quente pela garganta e nesse nível de conforto avaliei de novo a situação. Minha esperança era que os assaltantes que invadiam a casa seguidos por um cortejo de mendigos chegassem à nossa mesa e nos forçassem a sair dali sob os rogos e os canos serrados das espingardas calibre 12. Percebi então que tudo não passava de uma quimera porque as viaturas da polícia fechavam a calçada com as sereias abertas. Logo que o tiroteio espatifou os vidros das janelas e as garrafas enfileiradas nas prateleiras, mergulhei o tronco embaixo da mesa e nesse momento dei de cara com as sandálias de alumínio. Presumi que eram peças de vestuário ditadas pela escassez e não me preocupei com o seu aspecto até que ela apertou as solas sobre minhas faces escanhoadas e trincou os dentes da frente. Devo ter ficado suscetível a ponto de puxá-la pelas pernas consciente de que ela assim não cederia jamais, jamais. Restava no entanto a perseverança em esperar o fim do encontro entre mendigos, assaltantes e a polícia e uma vez eliminados os dois primeiros ela empurrou a cadeira para trás disposta a se despedir. Mesmo de joelhos no ladrilho dei-lhe a mão direita já azulada e tive a surpresa de constatar que ela retribuía ao gesto. Possivelmente considerava cumprida a missão daquele dia e por isso me estendia os dedos crivados de esporas. Não fiz nenhum comentário para não parecer aborrecido apesar da dor que escorria das feridas para o piso como um cacho de lágrimas. A verdade é que o tempo urgia: vendo-a lá de baixo atravessar a porta de saída calcando sob as sandálias farrapos de roupa, estilhaços de vidro e cápsulas detonadas, saí do esconderijo, limpei o suéter como pude, ajeitei o boné e reconciliado com a vida fui cambaleando para o carro estacionado junto à calçada em frente ao Café das Flores. Ao abrir a porta perfurada pelos tiros extraviados ergui a cabeça e vi que no céu de Pinheiros uma lua de sangue brilhava no silêncio eterno dos astros. Como as imagens poéticas não mudam o mundo dei a partida e fui para casa aliviado por não ter que pensar em mais nada.

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