São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1994
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Cobain queria escrever a canção perfeita

EMMANUEL TELLIER
DO "EL PAÍS"

Em entrevista concedida à época do lançamento de "In Utero" (agosto de 1993), Kurt Cobain (vocalista e guitarrista do Nirvana que se matou com um tiro na cabeça na última sexta-feira), Chris Novoselic (baixista) e Dave Grohl (baterista) falaram sobre as expectativas em relação ao futuro da banda. Cobain revelou seu incômodo com o sucesso e que a banda já havia pensado em se separar, meses antes da dissolução anunciada na quinta-feira passada.

Kurt Cobain - Nossos fãs mais radicais custam a admitir, mas vão ter que se acostumar. Sou um admirador dos Beatles. Não conheço nada que seja mais bonito que as canções deles. Há alguns anos me obcecava a idéia de escrever a canção perfeita. Assim, passava o dia todo, deitado na cama –oito ou dez horas seguidas. De noite adormecia com a gitarra nos braços.
Desde que todos caíram em cima da gente, já não toco a guitarra com tanta naturalidade. Me apresento com menos frequência, me organizo melhor
Agora as cancões se formam inconscientemente na minha cabeça. Ouço melodias, que se desvanecem em seguida, mas um dia voltam a aparecer. Estão na memória, em algum lugar.
Estou mais relaxado desde que estou consciente desta faculdade que tem o meu cérebro de armazenar emoções, climas. Não me sinto obrigado a escrever todos os dias. Posso fazer outras coisas.
Pergunta - Sentiu sua capacidade de compor ameaçada?
Cobain - Nunca ocorreu um verdadeiro bloqueio. Por outro lado, aconteceu um problema terrível certa vez que estávamos em turnê. Tinha escrito uma dezenas de canções. Na manhã que partimos coloquei as anotações na caixa de uma das minhas guitarras preferidas e a escondi no chuveiro pensando que, se um ladrão entrasse, jamais buscaria alguma coisa nesse lugar da casa. Quando voltei, havia um recado: meu vizinho de cima pedia desculpas pelos estragos causados pelo vazamento de água de sua banheira.
Aí sim que tive problemas. Tínhamos que gravar dali a três meses e que não tinha nada... Psicologicamente, a época pior foi depois do caso "Vanity Fair" e todos os ataques contra Courtney, minha mulher (Courtney Love, cantora do grupo Hole, que declarou ter consumido heroína durante a gravidez da filha do casal, Francis Bean). Havíamos acabado de ter uma filha e pessoas horríveis queriam separá-la de nós. Durante uns meses a música teve pouca importância para mim.
Pergunta – Apenas acabou "In Utero", você já sente vontade de fazer um novo disco?
Cobain - Já tenho algumas canções. Queremos introduzir mudanças profundas no nosso som, experimentar outras coisas. Creio que passaremos mais tempo no estúdio, que utilizaremos a técnica de uma maneira muito diferente.
Tenho vontade de superpor muitos sons diferentes, usar samplers. Tenho vontade de usar esse material, de contrastar sons, de inventar algo de novo.
Pergunta – Por que não fizeram isso antes?
Cobain – Não havia necessidade. Queríamos levar o punk rock ainda mais longe, chegar ao limite do caminho. Agora tenho medo de me repetir.
Estou um pouco cansado desses sons. Essa fórmula não nos estimula mais. Chegou o momento de fazer outra coisa.
Dentro de dez anos me imagino na minha casa com minha mulher e meus filhos. É mais que suficiente para a minha felicidade. Mas a música estará sempre lá, talvez como um passatempo.
Haverá, sem dúvida um outro grupo, totalmente oposto ao Nirvana. Talvez Chris e Dave façam parte dele, não sei. Ou talvez tocarei solos.
Sinto uma admiração sem limites por Neil Young por sua trajetória exemplar. Fez tudo e tentou tudo. Gostaria de envelhecer como ele... Gostaria de ser considerado um compositor de música e não apenas o líder do Nirvana. O tempo dirá.
Pergunta – Se pudesse refazer a história, que partes mudaria?
Cobain – Creio que teria ido à escola das estrelas do rock. Teria passado por um exame de cantor de sucesso, para aprender. Para me acostumar com a realidade deste universo, tão diferente do que imaginava quando vivia em Aberdeen (cidade natal de Cobain, no Estado de Washington, noroeste dos EUA). E teria gravado "In Utero" antes de "Nevermind" para avançar progressivamente. Teíamos durado mais, o impacto seria menos brutal para todos.
Pergunta – Você acha que "In Utero" venderá menos que "Nevermind"?
Cobain – É o destino.
Pergunta – Você está preparado para essa possibilidade?
Cobain - Rezo para isso acontecer para que recuperemos nosso verdadeiro lugar! Há dois anos que peço aos céus que isso aconteça. Pode ser que alguns interpretem isso como um fracasso, mas nós não sofreremos nada com isso. Muito pelo contrário, para nós será uma forma de êxito. Talvez o nosso maior.
Chris Novoselic – Quando conheci Kurt em Aberdeen, ele era um cara bastante curioso, muito autêntico. Ele gostava dos melhores grupos underground, ficava louco com o punk rock.
Passava o tempo entre seus discos e sua prancha de desenho. Fazia pequenos desenhos animados fantásticos. Eu pensava que estava destinado a ser um fantástico desenhista.
Pergunta – O que Dave Grohl achava do grupo antes de se juntar a ele?
Dave Grohl - Eram bons, mas sem genialidade (sorri)... Eu tinha acabado de deixar meus melhores amigos, o grupo Scream, com o qual havia passado quatro anos.
No primeiro ensaio com Nirvana, começamos com uma meia hora com sons improvisados. Nunca abandonamos esse método, que funciona bem para nós. Creio que nós três somos anormalmente sensíveis ao ruído e à simplicidade. Podemos passar a noite assim, tocando um som simples, reto.
É uma de nossas grandes forças: sabemos ser simples e potentes. A melhor arma do grupo é a sua espontaneidade. De repente o ruído nos absorve, os instrumentos estão livres, cada um explode por seu lado. Esse momento é o que conta. Por esse instante, por essa embriaguez, é por isso que tocamos o mais forte possível.
Novoselic – Não fazemos nada calculado. O Nirvana apela para o inconsciente. Sabemos ser extremos em duas direções: na suavidade e no barulho.
Pergunta – Quem sofre mais com as pressões em cima do grupo?
Grohl – Kurt, sem dúvida nenhuma, mas todos nós nos perturbamos. Todos já pensaram em deixar o grupo. Nenhum um de nós estava disposto a se transformar em pop stars. É uma pena, porque se fôssemos estrelas filhas da puta, não nos afetaríamos tanto com tudo isso. As estrelas vivem em outro mundo.
Pergunta – Porque vocês trocaram o título de "I Hate Myself and I Want to Die" (Eu Me Odeio e Quero Morrer") para "In Utero"?
Novoselic – Não gostei desta frase e disse a Kurt: "Kurt, o que faremos se um garoto de 12 anos mete uma bala na cabeça, em uma granja em Nebraska, depois de ouvir nosso disco?" Judas Priest passou por isso, e Ozzy Osbourne também. Todos esses grupos irresponsáveis tiveram problemas com suas canções doentias. Mas nós não somos tão idiotas...
Pergunta – Vocês têm medo de se tornarem cínicos?
Cobain - Eu era muito mais cínico há cinco anos, antes de toda esta loucura. Era bem negativo. Na época estava totalmente impregnado de punk rock. Vivia nesse ideal marginal: a negação completa do comércio, a rebeldia integral.
Pergunta – Você disse que às vezes tinha medo de ser incapaz de reconhecer seus fãs.
Cobain - Essa é minha maior angústia. Muitos grupos foram abandonados por seus mais fiéís defensores quando o sucesso os pegou de surpresa. De certo modo, sinto medo de ficar órfão.
Não sei nada a respeito de todos aqueles que compraram "Nevermind" dois meses depois que o disco saiu. Não sei quem são, nem em quem votam, nem que aspecto têm. Provavelmente há alguns que agridem suas mulheres, e outros que deixam seu cachorro para trás quando mudam de casa... Temos algum ponto em comum com eles?
Há inúmeros que não entenderam o sentido de "Smells Like Teen Spirit". Os que fizeram desta canção um fenômeno –os estudantes aplicados, os universitários não entenderam que a mensagem era destinada a eles, que a canção era um ataque contra o "espírito jovem" das universidades. Tenho que admitir: a maioria não entendeu grande coisa.

Tradução de LISE ARON

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