São Paulo, terça-feira, 12 de abril de 1994
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Abuso sexual

MARTA SUPLICY

Ocorreram, nestes últimos dias, dois fatos marcantes e absolutamente contrastantes: o lançamento do "Guia de Orientação Sexual, Diretrizes e Metodologia", da pré-escola ao 2.º grau e a denúncia do abuso sexual de várias crianças menores de seis anos, com a violentação de pelo menos uma delas, alunos da Escola de Educação Infantil Base, na Aclimação.
A indignação da população, que depredou o prédio da escola, o espaço que o assunto ocupou na mídia, manchete em todos os jornais televisivos e escritos, expressam o sentimento de revolta que cobriu o país.
Até o aparecimento deste guia não se encontravam livros de fácil leitura, por faixa etária, cobrindo a gama de assuntos que este cobre. Nada que explicitasse, tão claramente, os valores e informações sobre sexualidade que os adultos deveriam se preocupar em transmitir às crianças, desde a infância.
Contrariamente ao que se afirmava há algumas décadas, hoje existe a clareza de que a ignorância não protege a criança e que a pureza e a inocência não garantem o desenvolvimento de um bem-estar sexual na vida adulta. Ao contrário, criança desinformada é presa fácil de abuso sexual e a curiosidade sexual das crianças deve ser satisfeita conforme sua manifestação.
A inibição da curiosidade, assim como a punição dos atos sexuais inerentes ao processo de sexualização é que podem gerar a dificuldade em pensar sobre os próprios valores sexuais, a apropriação do próprio corpo e do desejo e o desenvolvimento de atitudes condizentes com a própria moral.
Em vista do que aconteceu na escola de educação infantil Base e do que ocorre em muitos lares, é interessante a apresentação das mensagens sugeridas dentro do conceito saúde sexual no guia, para crianças de cinco a oito anos de idade.
Pode-se pensar que em uma escola na qual os professores aprontavam o que os professores desta aprontavam, de que adiantaria? Provavelmente para eles nada, mas se os pais tivessem transmitido aos filhos algumas das informações propostas no guia, estas crianças teriam tido a possibilidade de ter informação que lhes daria condição de perceber que algo inadequado estava acontecendo e que deveria ser comunicado aos pais.
E o mesmo se daria se um membro perturbado de uma família abusasse sexualmente de uma criança, que frequentasse uma escola que tivesse orientação sexual, na qual ela aprendesse o seguinte:
Abuso sexual (tópico 5), subconceito: pode ser prevenido ou impedido. Ocorre abuso sexual quando uma pessoa utiliza-se de outra –através da violência, do poder ou da autoridade ou da diferença de idade– para obter prazer sexual.
Mensagens a serem desenvolvidas (nível 1):
– O corpo de uma pessoa lhe pertence.
– Todos, inclusive crianças, têm o direito de pedir aos outros que não toquem seus corpos, quando não quiserem ser tocados.
– Existem razões pertinentes para alguns adultos olharem ou tocarem os corpos nus das crianças, tais como um médico que examina uma criança ou pai/mãe que dão banho em seu filho.
– Nenhum adulto deveria tocar as partes íntimas de uma criança, exceto por razões de saúde e higiene.
– O abuso ocorre quando alguém mais forte, mais poderoso ou mais velho olha ou toca as genitais de uma criança sem razão válida, ou se utiliza dela, de alguma outra forma, para obter satisfação sexual.
– O contato entre um adulto e uma criança pode ser lúdico, carinhoso e prazeroso, mas nunca deve estar a serviço do prazer sexual do adulto.
– Tanto meninos quanto meninas podem ser vítimas de abuso sexual.
– O abuso sexual pode ocorrer dentro ou fora da família.
– O abuso sexual sempre traz prejuízos emocionais às vítimas.
– Uma pessoa que está cometendo um abuso sexual costuma ameaçar e pedir para a criança manter segredo.
– Crianças devem, desde cedo, conhecer seu próprio corpo e aprender a dizer não a adultos, para se protegerem do abuso sexual.
– Se uma pessoa estranha tentar forçar uma criança a acompanhá-la, a criança deve ser orientada a soltar-se rapidamente e comunicar a seu pai/mãe, professor(a), vizinho ou outro adulto.
– No Brasil, a grande maioria dos abusos sexuais ocorre em casa, por pessoas que a criança conhece, em quem confia e de quem gosta.
– Uma criança nunca é culpada de ser alvo de abuso sexual e deve saber disso.
– É importante a criança saber que a maioria dos adultos e adolescentes não abusam sexualmente de crianças.
Deve-se ter em mente que este guia somente fornece os parâmetros para o adulto se posicionar e saber até onde ir e o que transmitir, para as diferentes faixas de idade. O vocabulário deve ser adequado ao ambiente da criança e as mensagens inseridas dentro de um contexto participativo.
Em vista dos 86% dos pais, de dez capitais consultadas, que responderam afirmativamente à pergunta do Datafolha, se desejavam orientação sexual nas escolas, e em vista da indignação da população sobre o acontecimento das últimas semanas, é mais do que hora de os políticos se preocuparem com este assunto e incrementarem projetos desta natureza em suas cidades.

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