São Paulo, sexta-feira, 15 de abril de 1994
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João Gilberto amplia seu "songbook"

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

João Gilberto amplia seu 'songbook'
O cantor e violonista mostrou canções esquecidas em recital na terceira noite da série Heineken Concerts
O cantor e violonista João Gilberto interpreta o arquivista da música brasileira. Anteontem, na terceira noite da série Heineken Concerts, no Palace, ele exibiu todo seu saber no assunto. João não faz shows exibicionistas. Só com o violão, arquiteta surpresas bem mais hábeis. Materializa a história da MPB por meio do momento único do canto. O arquivista é também o melhor intérprete.
João fez mais um recital do que um show, como sempre. Forrou o chão do palco à sua frente com letras de canções esquecidas e lembrou os sucessos da bossa-nova. Ao longo de 1 hora e 10 minutos, mostrou 22 músicas, duas em dueto com sua filha, a cantora Bebel Gilberto, que abriu a noite acompanhada pelo pianista norte-americano Steven Sandberg.
O show de Bebel foi medíocre. Sua voz domina os graves, mas lhe falta tornar também graves os sentimentos. Escolheu um pianista chato, metido a salseiro.
João salvou a noite. Estava de boa índole. Não reclamou do público que queria cantar. Chegou às 22h e magnetizou a platéia com seus acordes precisos e a voz serena, embora limitada nos graves. Pediu palmas para o compositor Dorival Caymmi, que está completando 80 anos, e o homenageou com um sucesso e uma incógnita.
O sucesso, "Rosa Morena" (1942), trouxe à luz como recém-nascido. A incógnita era "Lá Vem a Baiana'. A música foi gravada pelo próprio Caymmi em 1947 e ganhou uma corrente de interpretações obscuras, de Ivon Cury em 1954 ao Trio Iraquitã, em 1957. Cinzelou-a para o formato de canto falado e concentrou os 98 de Caymmi em uma canção.
Ele combateu a amnésia do público (e da crítica, desesperada atrás de uma lista que o cantor não forneceu) sem dar informações sobre as canções. Deixou tudo no ar. Cantou com extrema concentração duas músicas de Tom Jobim celebrizadas por Sylvia Telles: "Se É Por Causa de Adeus" (parceria com Dolores Duran), samba-canção pré-bossa-nova gravado por Sylvia em 1957, e "Fotografia" (Tom Jobim-Marino Pinto), talvez a obra-prima da bossa-nova pela concisão das imagens e a melodia cromática, lançado pela cantora em 1959.
Agregou essas maravilhas que se desgarraram da memória do público ao seu "songbook" de clássicos como "Meditação"(Jobim-Newton Mendonça). Nestes. alterou notas aqui e ali para presentear iniciados.
No final, como se não bastasse, desencavou uma raridade em dueto com Bebel. Cantou "Ai, Ioiô" (Henrique Vogeler-Luiz Peixoto-Marques Porto), que inaugurou o gênero samba-canção, em 1929, na voz de Aracy Cortes.
A aura foi embora às 23h10. Se fosse possível desbastar todas as rebarbas da MPB e isolar seu máximo divisor comum, este seria João Gilberto. Ele sintetiza a história e a excelência interpretativa da música brasileira. Nele estão contidos todos os cantores e as virtualidades dessa música. Esse chato iluminado obriga os espectadores a se debruçarem inquietos sobre um passado que está neles, sem que saibam.

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