São Paulo, sexta-feira, 15 de abril de 1994
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As listas de Biscaia

JOSÉ CARLOS DIAS

Um "dedo-duro" forneceu ao Ministério Público informações sobre os arquivos do bicheiro Castor de Andrade. Por estranha coincidência, isso ocorreu quando o governo do Rio mudava de mão. Foram divulgados nomes de personalidades públicas que teriam recebido dinheiro do conhecido contraventor. O ator principal de tal performance é o procurador-geral da Justiça do Rio, Antônio Carlos Biscaia. Nomes e nomes foram surgindo. E, a partir daí, acusações, defesas, justificações de natureza jurídica, ética, política.
Volta à cena o bicho-papão do bicho. Sustenta o samba, influi no futebol, faz política elegendo gente, dando propina e ajudando campanhas, exerce, tal qual a Máfia, um grande poder corruptor. Dizem até que alguns bicheiros, não se satisfazendo com os lucros da contravenção, passaram para o crime de tráfico de entorpecentes.
O fenômeno do jogo do bicho necessita ser analisado de maneira mais cuidadosa. Por que no Rio o problema é muitíssimo mais grave do que em outros Estados? Por que se tornou contravenção penal aquilo que durante muito tempo foi uma atividade lícita? A quem interessa a clandestinidade de tal atividade que em nada diverge de outros jogos de azar que poderíamos alcunhar de oficiais?
Esta situação fermenta a corrupção, propicia ganhos diretos e indiretos aos "banqueiros" e "bancários" que, livres de impostos, flutuam no mercado de maneira extremamente perigosa. O preço da impunidade é muito alto. Muitos dos que trabalham na corrente do bicho, os "apontadores", por exemplo, são cidadãos que poderiam estar registrados, exercendo a mesma atividade. Não são bandidos, não estão nutridos por vontade de delinquir.
Entre as "verbas" destinadas a comprar e amolecer autoridades, a fazer lobby junto a políticos e mídia, existem também as doações geradas por gestos de solidariedade humana, sem que, obrigatoriamente, estejam tais gestos atrelados a um interesse escuso.
Há outras lições a serem tiradas do episódio. Parte da imprensa continua a exceder-se no seu dever de informar, acusando e julgando de forma açodada pessoas que podem ser culpadas, mas que também podem ser inocentes e que merecem, umas e outras, o foro próprio para o julgamento que não é o jornal, a revista, o rádio ou a TV.
A mídia oferece um imenso palco a alguém que está extrapolando de suas funções estabelecidas a partir da Constituição. Refiro-me ao procurador Biscaia, a quem incumbe zelar pela intocabilidade do princípio constitucional da presunção de inocência de todos os cidadãos, políticos ou não, réus ou não de outros processos.
Não tem o dr. Biscaia o direito de, prevalecendo-se das informações de que dispõe (e motivos existem, de sobra, para duvidar até mesmo da autenticidade de muitos documentos), pronunciar-se, emitir julgamentos, fazer exibicionismo à custa de cidadãos cuja culpabilidade jurídica somente poderá ser apreciada pelo Judiciário. O dr. Biscaia é Ministério Público, só pode acusar no devido processo legal, não pode usurpar funções.
A atuação da OAB do Rio parece, a meu ver, também censurável. A entidade existe para zelar pela ordem jurídica, dizem seus estatutos esculpidos na lei federal 4.215/63. Sim, é verdade, porque a ordem jurídica do Estado de Direito é a que garante o direito de defesa. A OAB não é órgão parapolicial ou para-Ministério Público. Se os advogados praticam infrações éticas, deve processá-los. Mas em silêncio. É o que manda a lei.
Nas listas de Biscaia, estaria revelada uma face da podridão de nossos costumes políticos. Mas uma grande verdade deve ser demonstrada: a honra das pessoas é um bem valiosíssimo, um patrimônio delicadíssimo e, por isso, tem que ser resguardada por todos, mas principalmente pelos que, por força de comando legal, estão incumbidos de acusar, desde que haja justa causa, assim como pelos que têm o dever de informar.
Um nome colocado à exposição pública indevidamente, muitas vezes, não se reabilita. Está condenado ao opróbrio público. Quem ataca injustamente a honra alheia não pratica somente uma contravenção penal, como é o jogo do bicho. Sua conduta, perante o direito, é mais grave, é tipificada como crime. Atentemos para isso.
Leio os nomes arrolados como comprados pelos bicheiros. Alguns deles ostentam roteiros de existência de indiscutível probidade na vida privada, no ofício exercido, na condução da coisa pública. Resisto ao ímpeto de citá-los, para que ninguém interprete este texto como defesa individualizada.
No entanto, não há como deixar de mencionar um exemplo muito significativo: Janio de Freitas noticia na edição de 13 de abril último da Folha que o nome de Nilo Batista teria sido incluído indevidamente, através de prova documental que, a evidência parece ser falsa. Isto demonstra a inidoneidade de quem manipulou tais provas, enlameando um cidadão respeitado, uma autoridade de tão grande envergadura. De duas, uma: ou sabia ser a prova suspeita ou não tinha capacidade de atinar para tal falto.
Insurjo-me, pois, contra a pretensão dos donos de falsas "mãos limpas" –detentores do monopólio da pureza e da moralidade– de levar de cambulhada o direito de defesa, pressuposto essencial de um Estado democrático, em benefício, pelo menos, da própria vaidade de passar por paradigma do bem e da coragem.

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