São Paulo, segunda-feira, 18 de abril de 1994
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Miséria canibal

Quando se acredita que as enormes injustiças sociais que vêm deformando o Brasil nas últimas décadas já mostraram todas as suas terríveis facetas, descobre-se que há coisas piores, infinitamente piores, inimaginavelmente piores, acontecendo. A constatação de que alguns moradores dos bolsões de miséria de Olinda, forçados pela fome extrema e endêmica, vêm consumindo carne humana proveniente de lixo hospitalar é uma injúria, um ultraje a toda a nação e também à própria humanidade.
O canibalismo sempre despertou a maior repulsa nas sociedades ocidentais. Só se admitia discuti-lo –e ainda assim sob um pesado manto de controvérsia– em condições-limite, como a de um naufrágio ou de sobreviventes de desastres aéreos, por exemplo. É óbvio que há algo de profundamente errado com um país que permite que situações-limite façam parte do cotidiano de alguns dos seus cidadãos.
Também é grave o fato de que as autoridades públicas têm grande parcela de responsabilidade no episódio. Ora, o tratamento que vem sendo dispensado ao lixo hospitalar de Olinda é, sob todos os prismas que se analise, um acinte.
Além de fornecer, talvez até inopinadamente, carne humana para o consumo da população carente, jogar detritos provenientes de hospitais, ou seja, provavelmente contaminados com boa parte dos agentes patogênicos conhecidos pela humanidade, num lixão com o qual mulheres e crianças mantêm estreito contato é, para dizer o mínimo, um atentado à saúde pública. O imediato reparo dessa situação e a exemplar punição dos responsáveis é um imperativo urgente.
O criminoso destino dado ao lixo em Olinda –e sabe-se lá em quantos mais lugares desse imenso e pobre país– é porém quase insignificante diante da magnitude do problema da miséria no Brasil. Afinal, a miséria é como que uma outra forma de canibalismo, talvez mais cruel, certamente intolerável, em que a sociedade devora, vivos, os seus próprios cidadãos.

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