São Paulo, terça-feira, 19 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Intelectuais querem casar esquerda e direita

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os intelectuais estão em suspense. Três artigos geniais saíram no mesmo dia (10 de abril): um de Celso Lafer –"A Inteligência desata o nó do dogmatismo"; outro, de Renato Janine Ribeiro –"O necessário diálogo que não acontece" – (ambos no "Estado de S. Paulo") e "Militância e Participação" de José Arthur Giannotti no "Mais!" da Folha.
Três pânicos no céu de domingo.
Duas possibilidades se agitam no ar: ou a vitória de Lula, de uma "esquerda" mais visceral, finalista, estatizante, ou a vitória de FHC, "esquerda" culta, passada pelo mundo, conciliatória. Duas esquerdas podem ocupar o mesmo lugar no espaço?
Estamos todos com pavor de ser chamados de "direita". Serei de direita por respeitar o "complexo" ou serei de esquerda se amar o simples? Vísceras ou razão, punho cerrado ou diálogo? Ou tudo ruirá e chegará Fortinbrás-Quércia no quinto ato e manterá viva a endemia rural do populismo caipira?
O Brasil (quem diria?) será o palco mundial de um teste ideológico raro. Utopias se enfrentam. Lênin contra Gramsci, Getúlio contra Bobbio –fino debate cercado de boçalidade e hiperinflação por todos os lados. É maravilhoso viver no Brasil! Assim como mundos lutam no arcaico, um querendo nascer, outro não querendo morrer, a esquerda também tem sua luta agrário contra urbano.
O suspense é grande porque todos sentimos que estamos num momento histórico único. Os três artigos tentam casar ideologia com eficácia, os fins com os meios, atos e mentes, soma de esquerda e direita. As esquerdas se excluem com medo de "trair ou desertar", como apontou Celso Lafer.
O ideal seria um transplante de cérebros. A cabeça de Santiago Dantas no corpo do Rui Falcão. A idéia de "inclusão do outro" é das mais finas asas de borboleta. Convencer o PT a ter bandeiras rosa-chá com slogans "nuancés" é tão difícil quanto obrigar o Tasso Jereissati a trabalhar numa metalúrgica. Tão delicada e fascinante é a situação que surgem racionalizações tentando resolver o impasse.
Algumas:
1 – A esperança de uma revolução "light", onde um consenso de técnica e razão poderia triunfar. Mais para PSDB.
2 – A ditadura do proletariado "soft", pelo voto. A idéia recôndita no PT, de substituir o atual sistema político por uma "democracia direta", leva ao populismo e autoritarismo. "Quando Lula assumir, refundar-se-á o Estado", como apontou Giannotti.
3 – A versão cristã da teoria anterior. A união dos corações, como a campanha contra a fome. A sociedade precisaria de um "by-pass", uma safena transpolítica que nos salve, pela mobilização da cidadania e solidariedade. É a solução "mágico de Oz": há "algo mais" além do horizonte, "over the rainbow" há a solução.
4 – A teoria do "trauma democrático". Dizem: "O Brasil precisa já da porrada do PT no poder" ou "essa criança tem de nascer logo". Intelectuais finos seduzidos pelo machismo xiita. Haveria uma pureza no operário. Maoísmo tardio. "As elites tiveram tudo e não fizeram nada. O Brasil vai pegar no tranco!". Não se trata da velha tese do "quanto pior melhor"; é um "banho de grossura na lenta complexidade".
5 – "O capital também tem alma". A complexidade do mercado seria um fac símile da complexidade da vida humana. Há razão na marcha das coisas. O papa é Fukuyama, que emprestou o charme de Hegel ao liberalismo. Ou seja, tanto faz Lula como FHC, pois o determinismo das mercadorias regulará a história.
Os dois monturos
O problema é que no Brasil direita e esquerda são dois emaranhados de desejos que não desenham figuras legíveis. Temos sensações, mas nenhum programa. Janine diz que a "direita não tem projeto". E o projeto da esquerda-PT são sonhos que ficaram intocados pelo tempo. Confundem teimosia com integridade.
O que se dá o nome de "direita" é uma maçaroca de interesses personalistas que só se igualam pelo comum descaso com a miséria. O que se dá o nome de "esquerda" é um agregado de sonhos eróticos de igualdade, misturados com o desprezo pelas possibilidades reais. A esquerda confunde ideais com projeto. A direita não tem projeto porque a própria idéia de "projeto" é uma idéia "de esquerda".
Hitler não passou de uma mímica psicótica de Lênin. O direitista é grosso como um stalinismo privado. Vejam sua vida pessoal. O intelectual tende a atribuir uma prática mais "complexa" ao burguês, porque ele teria o treino do mundo dos negócios. No Brasil, isto é falso.
Vejam o boicote permanente dos supermercados e quitandas ao plano. A direita é burra porque não ajuda o plano, que pode barrar o Lula que tanto teme. O único ponto em que esquerda e direita concordam é que ambas querem a proteção do Estado-pai.
Ser de direita é ter pavor de fins. Ser de esquerda é odiar meios. Não há uma direita clara no Brasil. A direita teria de compor ideários, éticas. No Brasil, nem a direita é eficaz. No Brasil, temos apenas um monturo de desorientados acumuladores. É falsa a idéia recente do "empresário" como ser "racional" e finalista. São poucos os empresários que pensam no pais.
Meios e fins
O ponto central nos três artigos é a dissincronia entre meios e fins. "Há um abismo entre os princípios-fim da linhagem da esquerda e seus conhecimentos-meio" – (Lafer). "A direita tem os melhores meios, a esquerda os únicos fins" – (Janine). "Mais vale a modernização do sistema político como um todo, que o poder exclusivo de um Partido" – (Giannotti).
Ou seja, subjaz a essas reflexões o desejo de salvar um projeto nacional numa espécie de liberal-progressismo, um casamento do reformismo romântico com a fascinação que os intelectuais têm pela escrotidão eficaz dos burgueses. Mas, tanto esquerda como direita tendem a escorregar para além do desejo dos lúcidos teóricos, pois elas são feitas de um bucho prático que escapa a qualquer lógica.
A direita faz um culto à "complexidade dos caminhos" até a justiça social; para ela, o fim da miséria seria um "by product" da livre concorrência (Janine). Já a esquerda vê a complexidade como traição ou frescura.
A esquerda só ama o todo. A direita só pensa na parte. A direita fala em crescer o bolo para distribuir. A esquerda acha que a prosperidade das empresas a empobrece. No entanto, não haveria ABC sem dinheiro externo, nem Lula sem ABC.
A esquerda se beneficiaria com um choque de direita. A direita não está nem aí. O medo move a direita. A vingança move a esquerda. E o intelectuais tentam descobrir razão nos dois dinossauros. A direita ganha sempre porque é mais instintual. O "Homem" é burguês. Já a esquerda é uma formação secundária. Tanto a esquerda quanto a direita odeiam "nuances". Todos ficam "de direita" na hora de agir. E, hoje em dia, ainda terão de dar shows para as massas. Os fins justificam os "mídia".
Para a direita, os meios "são" os fins. Para a esquerda, os meios não estão à altura de seus fins. O burguês não tem fim; ele é um fim em si mesmo. A idéia de fim é proletária.
A direita odeia poesia. A esquerda odeia administração. "Um dia, chegaremos lá!", diz a esquerda. O burguês já chegou lá. A esquerda não tem memoria; repete erros. A direita não erra nunca. A direita é sádica. A esquerda é masoquista. A esquerda acha que é sujeito da história. A direita sabe que a história não tem sujeito, tem objeto: o lucro. A esquerda é o Homem. A direita é um homem. A verdadeira esquerda é tudo que é profundo. A direita é tudo que é superficial (apud Gustavo Dahl).
Mas, às vezes, a sordidez pode ser profunda e a utopia superficial. A esquerda tem inveja do pragmatismo e do poder da direita. A direita não tem inveja de nada da esquerda.
Utopias realistas
Como chamar este desejo integracionista dos intelectuais em pânico? Liberal-progressismo, liberalismo de inovação (Lafer) ou utopia realista?
O liberal-progressismo quer que o mundo das coisas atenue o impacto voluntarista da esquerda. O liberal-progressista quer pragmatizar a esquerda e dar sonhos a burgueses. Mas o sonho burguês é individual. E o liberal-progressismo ainda é um sonho de esquerda.
Será que é tarde demais? Tudo demora tanto, a penúria teórica é tanta que só resta ao liberal-progressismo buscar a razão no mundo da prática mercantil.
Por outro lado, este bebê da esquerda custa tanto a nascer que pode vir como uma revolução tardia e "restauradora". A esquerda foi tão mimada pelo sindicalismo de Estado, que nunca lutou sozinha contra o capital. Sempre teve a "interface" do governo.
A esquerda nunca teve uma "luta de classes de mercado". Tudo demorou tanto que a esquerda tende a cometer erros infantis e restaurar o getulismo, achando que salva o povo. Estamos atrasados para o trem da estação Finlândia. Vamos parar de frescura e votar no PT ou vamos parar de burrice e votar no PSDB? Você decide, leitor: sou de esquerda ou de direita?
Enquanto pensamos, Quércia contratou com ouro o "Strategy XXI Group". São três intelectuais americanos que vão manipular nossas ilusões políticas: Harriet, Furst e Martilla. Elegeram o Clinton. Será a chegada do "imperialismo populista"?

Texto Anterior: MTV inaugura sessão diária de desenhos
Próximo Texto: Giorgetti capta confusão social em 'Sábado'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.