São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 1994
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O caminho (esquecido) do combate à pobreza

JOSÉ ELI DA VEIGA

A massificação do mercado que caracteriza o processo de desenvolvimento depende muito do custo da alimentação, porque ele é o pivô da distribuição de renda real. Esta é uma lição da história econômica de todas as nações do chamado Primeiro Mundo, que, desgraçadamente, não tem sido levada a sério entre nós. Daí a necessidade de enfatizar –em ano político tão decisivo como 1994– a importância estratégica da política agroalimentar.
A primeira noção a ser detonada é a da existência de "um" custo de vida, pois existem vários. O fato de diversas instituições divulgarem regularmente índices de preços "ao consumidor", induz muita gente a um terrível engano. O de esquecer que a composição do custo de vida de ricos e remediados. E se há um componente que muda da água para o vinho é justamente o das despesas com alimentação. Como mostra o quadro "Peso alimentar no custo de vida", a maioria dos trabalhadores gasta metade de sua renda na aquisição de alimentos, enquanto seus patrões, e respectivos séquitos de executivos e agregados, precisam comprar muito caviar para que este tipo de despesa chegue a representar uma fração significativa de seus orçamentos familiares.
Isto quer dizer que qualquer variação do preço relativo da comida tem um profundo impacto na renda real dos desvalidos, deixando de provocar, simultaneamente, qualquer efeito significativo na renda real dos abastados. Exatamente o inverso do que ocorre com bens duráveis, como automóveis, eletrodomésticos, ou eletrônicos. Quando os preços alimentares aumentam menos que os preços do conjunto dos bens de consumo, o custo de via dos pobres diminui, sem que isto produza qualquer alteração significativa no custo de vida dos ricos. A renda é distribuída pelo aumento real dos mais baixos salários. Da mesma forma, quando os preços dos eletrônicos, por exemplo, sobem menos que os preços dos bens de salário, o custo de vida dos ricos diminui, sem que isto chegue a alterar o custo de vida do povão. A renda é concentrada pelos ganhos reais dos que auferem altos rendimentos.
Num país no qual a esmagadora maioria das famílias sobrevive com o equivalente a alguns parcos salários mínimos, a redução dos preços alimentares deveria ser vista como prioridade das prioridades. Acontece, porém, que o Brasil caminha há quarenta anos na direção oposta e que essa aberração se acentuou muito a partir de 1983. O quadro "Disparidade entre o índice de preços da alimentação e o IPC" indica que os períodos 1985/86 e 1988/89 foram os piores, sendo que nos últimos quatro anos o custo da alimentação tendeu a se fixar em um nível 11% superior ao de 1980.
A partir de julho de 1991 alternaram-se fases de elevação e de queda, que correspondiam, respectivamente, ao segundo e ao primeiro semestres de cada ano. Só que este movimento cíclico acaba de ser contrariado pelos efeitos do Plano FHC e da quebra da safra de feijão de Irecê, fatores que estão prolongando a fase ascendente do segundo semestre de 1993. Em março a alimentação subiu mais de 47% enquanto o IPC subia menos de 42%.
As variações deste imenso conjunto de preços alimentares que entram na composição dos custos de vida não são simples reflexos das variações dos preços agrícolas. As tendências mais marcantes estão mais relacionadas às alterações do balanço global entre disponibilidade e consumo de alimentos. O quadro "Disponibilidade 'per capita' de calorias" mostra que a disponibilidade calórica não mais voltou ao nível de 1980, em clara sintonia com a estagnação do consumo. E é esse empate que impede o barateamento da comida.
É necessário, portanto, conseguir que a oferta de alimentos supere sistematicamente a demanda. Isto só se tornará possível se agricultores e indústrias alimentares estiverem engajados na corrida tecnológica. O que exige, por sua vez, forte investimento em educação, pesquisa e extensão, pois, nessas áreas, pequenos avanços anteriores foram destruídos nos últimos dez anos. Paralelamente, para que a obtenção de excedente alimentar não seja passageira, também é necessário um conjunto de medidas compensatórias que garanta renda razoável aos agricultores, principalmente quando os preços de seus produtos despencarem. Trata-se, na verdade, do estabelecimento de um novo contrato entre a sociedade e o agronegócio, cujo principal objetivo deve ser a obtenção sustentável de segurança alimentar, o que só ocorrerá se houver uma séria revalorização socioeconômica e cultural do espaço rural e da agricultura familiar.

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