São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 1994
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Maestro Temirkanov arrasta orquestra

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Ievgeni Mravinski, titular por 50 anos da Filarmônica de São Petersburgo, deve se remoer na tumba caso presuma o estrago que Iuri Temirkanov está promovendo na sua orquestra.
Em lugar da sonoridade limpa e da literalidade na leitura, o que se testemunhou anteontem à noite, na abertura da temporada da Sociedade de Cultura Artística, foi uma versão quase empastelada de demagogia sinfônica.
A filarmônica executou duas sinfonias que levam o número cinco: a de Piotyr Ilich Tchaikovski (1840-1893) e a de Sergei Prokofiev (1891-1953).
Nos dois casos, o maestro Temirkanov perdia propositalmente a noção do fraseado correto, bloqueava a trajetória melódica e só não afundou de vez a noitada porque ainda dispõe de um dos mais brilhantes conjuntos de instrumentistas de cordas de toda Europa.
Uma orquestra é sobretudo a fusão de um longo período de disciplina técnica com a liderança erudita de seu diretor musical. Mravinski, entre 1938 e 1988, fez da Leningrado um dos parâmetros mundiais de perfeição.
Seu sucessor, que, por força da implosão da ex-União Soviética, adotou a nova denominação da cidade russa em que a formação é sediada, está aparentemente de olho no mercado internacional da classe média sentimentalóide, que confunde virtuosismo com acrobacia e romantismo com regência açucarada em excesso.
Temirkanov perde então os escrúpulos e parte até para a falsificação do tempo. Um exemplo está no "allegro vivace" do quarto movimento da Quinta de Tchaikovski, que é épico porque "dói na alma", se for para se restringir às indicações do próprio compositor, que ali montou um quadro com episódios da "impotência espiritual do homem".
O que se ouviu, no entanto, foi uma militarização da cadência, gradativamente acelerada como se tudo não passasse do suposto acompanhamento de acrobacias de saltimbancos russos.
Há precedentes. Uma versão da mesma sinfonia, gravada em 1955 pela Concertgebouw de Amsterdã, dirigida por Van Kempen, inclui instrumentos de percussão não previstos na partitura para dar maior ênfase militar ao trecho.
Mas há também exemplos abundantes de como Tchaikovski –um autor melodicamente rico mas com notórias deficiências formais– pode ser objeto de uma interpretação honesta. Karl Bõhm e Claudio Abbado produziram nos anos 70 versões notáveis da peça.
A mesma peça foi gravada recentemente por uma orquestra européia de segundo nivel, a Sinfônica de Birmingham, com o maestro Simon Rattle. A diferença é imensa. Prokofiev, um compositor clássico na arquitetura e na instrumentação e moderno nas soluções harmônicas, foi um mestre da clareza da separação dos sons.
A pequena formação inglesa sabe disso. A grande formação russa também o sabia nos tempos de Mravinski. O que resta hoje dela, em São Petesburgo, é quase um espólio caricatural.

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