São Paulo, sexta-feira, 22 de abril de 1994
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Dener não encontrou o treinador certo

JOSÉ MIGUEL WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dener não encontrou o técnico certo
Ele era o mais fulminante craque da atual geração de jogadores brasileiros, mas sofreu pela ausência de 'Pai'
Nunca me deixei impressionar pela irregularidade de Dener: ele tornou-se para mim um desses jogadores raros que a gente assiste, qualquer que seja a partida, só para vê-lo pegar na bola.
Dener tornou-se, para nós que amamos o futebol e o Brasil, uma questão de honra: queríamos que a sua fragilidade fosse bem tratada e que a sua enorme potencialidade desabrochasse total. Não falo da fragilidade física, mais aparente que real nele, mas a da corda bamba psíquica do garoto-problema que deveria encontrar o time certo no momento certo, com o técnico certo e os companheiros certos.
Se ele tinha algo de Pelé e Garrincha, participava, também como Romário e tantos outros, dessa várzea simbólica que é a vida brasileira, onde se dá a macunaímica falta do Pai. Pai aqui no sentido simbólico, como instância da cultura, como a figura fundante daquele que dá o limite e a lei, que é e deixa ser.
Pelé veio de uma das dobras do Brasil onde foi possível ter o Pai, agora o Filho, e nele baixar o Espírito Santo: um gênio que dispõe dos atributos de Deus. Dener é um gênio da legião abandonada, que o futebol revela por instantâneos, e cujos dribles balançam entre a identidade e a perda, a inspiração e a instabilidade, o Espírito Santo em estado de orfandade.
Nós, aqueles que o amavam por tudo isso, queríamos que essa dívida sócio-cultural fosse paga a Dener. Eflúvios simbólicos positivos deveriam compensar a insegurança e a inconsistência dos paradigmas: jogar num dos maiores times de São Paulo, imediatamente, sem maiores períodos de adaptação pessoal, entre craques, e com um técnico capaz de formá-lo. Da seleção brasileira ele deveria receber sinais claros e constantes da sua importância absoluta. Mas isso, ora bolas, não se pode absolutamente esperar de Parreira e Zagalo, esses fantasmas do Pai insensíveis ao desgarramento polimorfo da vida que é a fonte da criação. Parreira e Zagalo não dialogam com o fio da navalha do óbvio surpreendente, nem apostam na emergência singular da novidade.
No futebol brasileiro, Telê Santana assumiu o papel modelar do Pai que forma e transforma o jogador, fazendo com que ele surja e ressurja metamorfoseado pelos limites que lhe são impostos e ao mesmo tempo pela extraordinária liberdade que ele conquista. Telê Santana arca com esse papel solitário, inclusive na neurastenia com que se lamenta cronicamente de ser, ele mesmo, o assumido portador da Lei num país sem ela, de ter que fundá-la a cada passo.
Pois teria sido sonhar demais querer que Dener, como Muller, que cresceu tanto sob a tutela de Telê, tivesse o tempo de ter sido lapidado num grande time por um grande treinador, ou por uma grande torcida, como a do Corinthians ou a do Vasco, num processo mais demorado.
Não falo da nossa dor de quase vê-lo naquele Mitsubishi desejadamente branco, criança de volta ao berço da tragédia brasileira onde se misturam confusamente, entre outras, a barbárie do tráfego e do tráfico. Façamos um minuto de infinito silêncio. Que ele vai renascer é tão certo como um chute indefensável.

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