São Paulo, sábado, 23 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Má vontade política

ABRAM SZAJMAN

Nos anos 70, em plena vigência no Brasil do governo de exceção iniciado em 1964, um teórico do regime tirou do fundo do baú das conveniências políticas uma pérola: a democracia relativa. Descobriu-se então que, dependendo das necessidades do momento, podia-se atribuir a relatividade a qualquer conceito, por mais absoluto que pudesse parecer à luz da razão.
Naqueles dias, o adjetivo anexado à palavra democracia cumpria o dever de conter os anseios dos que já não suportavam mais a exceção e acenava para eles com a versão de que de fato já se vivia plenamente o regime democrático, só que devidamente adjetivado, como convinha à antidemocracia absoluta.
Passados alguns anos, a história encarregou-se de eliminar o esdrúxulo adjunto, para felicidade não somente dos que prezam o sentido correto das palavras como principalmente daqueles que valorizam o significado da própria liberdade.
Nem tudo, porém, são flores. Foi-se o feiticeiro, mas permaneceu o feitiço, neste caso o vício de adjetivar inadequadamente os conceitos. Vamos ao fatos.
A Constituição de 1988, documento que chegou a canalizar as esperanças de milhões de brasileiros, cometeu a humildade de fixar uma data para corrigir-se no futuro. Os constituintes marcaram, assim, para 1993 um trabalho de revisão, destinado a mudar na Carta Magna aquilo que em cinco anos de vivência mostrasse necessidade de alteração. Irrepreensível como intenção, a medida revelou-se desastrosa na prática. A idéia simplesmente não funcionou. Desinteresse? Antipatriotismo? Incompetência? Apatia? Preguiça?
Nada disso, dizemos representantes do povo. Na verdade, não há vontade políitica para se fazer uma revisão constitucional.
A desculpa oficial para o fiasco da revisão, portanto, é a adjetivação novamente de um conceito que não admite qualificação. Como na história da democracia relativa, eis um novo jogo de palavras destinado a encobrir a deficiência de um Poder da República. Se existe uma vontade política com tanto poder (ou falta dele), por que falar então em vontade econômica e responsabilizá-la por exemplo pela inflação? Por que não cunhar a vontade social e atribuir-lhe a culpa pela miséria do país? Por que não criar a vontade educativa e acusá-la de causa maior da ignorância brasileira? Será que não falta à população carente uma vontade física de se alimentar bem e arrumar emprego?
A vontade, queiram ou não os políticos, é uma só. Ou existe ou não existe. Ou a temos em nós, como motor de nossas ações, ou não a temos, por deficiência, desinteresse ou acomodação. Ou a utilizamos a serviço do país, para corrigir-lhe o atraso crônico, ou simplesmente lhe atribuímos o adjetivo pomposo e vazio de política.
Graças a esta vontade política o Brasil corre hoje o risco de ver um plano econômico submergir nas ondas do insucesso, levando consigo as esperanças de um povo desiludido e cada vez mais empobrecido. Graças a esta irresponsabilidade política, estamos ameaçados de atrasar mais ainda nosso almejado ingresso no mundo desenvolvido.
Graças a essa incompetência política os brasileiros continuarão assistindo de mãos amarradas à sangria que estatais e monopólios provocam na economia do país. Graças a esta apatia política, a economia sofrerá não se sabe até quando o impacto de normas tributárias retrógradas e injustas. Graças a essa preguiça política o sistema previdenciário nacional continuará falido, premiando os aposentados com um final de vida cruelmente miserável.
O fim prematuro da revisão constitucional se transformou, portanto, na mais deprimente manifestação não da vontade, mas da má vontade de uma classe política –ressalvadas as honrosas porém insuficientes exceções- que não merece a população que diz representar. Lamentável.

Texto Anterior: Na prancheta; Queda vertiginosa; Em alta; No vermelho; Ná prática; Desconto negado; Sem comissão; Prática ilegal; O que é URV
Próximo Texto: Valor de imóvel pode ser retificado na declaração
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.