São Paulo, sábado, 23 de abril de 1994
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'Ópera está de cuecas', diz Cotrubas

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

A soprano lírico romena Ileana Cotrubas, 54, foi uma das donas da ópera nos anos 60 e 70. Há três anos trocou os palcos por aulas, concertos e recitais. Ela vem ao Brasil pela quarta vez desde 1976. Dá aulas e concertos com o quarteto I Vocalisti durante o Festival de Inverno de Campos do Jordão.
Canta dia 21 em Campos (auditório Claudio Santoro) e dia 24 em São Paulo (Teatro Municipal), ao lado da mezzo húngara Julia Hamari, do tenor Alexandru Badea e do barítono Ionel Pantea, ambos romenos e amigos de infância de Ileana. No dia 22 de julho, ministra uma "master class" de canto para bolsistas do festival.
Tem o que ensinar. Foi tida como a mais eclética das divas. Era capaz de enfrentar tanto o papel-título da ópera barroca "La Calisto", do compositor seiscentista italiano Cavalli, como impressionar na pele de Violetta em "La Traviata", do romântico Verdi.
Ileana, além disso, sempre exibiu talento teatral raro entre seus confrades. "Sem falsa modéstia, eu sou ótima", confessa. Mas se recusa a subir num palco novamente. Fez sua despedida com "La Bohème", no Teatro São Carlos de Lisboa. Sua discografia chega à centena, mas tem gravado pouco. Hoje dá aulas em universidades e se dedica a I Vocalisti, formado em 1991.
A razão maior do adeus à ópera para Ileana está na "pornografia" que, segundo ela, impera hoje no gênero. "A pornografia virou a 'mainstream'. A ópera está de cuecas", denuncia.
Em entrevista exclusiva à Folha, concedida anteontem, por telefone, de sua mansão na Riviera francesa, nos arredores de Nice, Ileana se diz escandalizada com a voga das montagens que modernizam óperas do século 18 e 19.

Folha - Quantos papéis você coleciona em seu repertório?
Ileana Cotrubas - Não me faça essa pergunta idiota. Eu sei que há cantoras, como Montserrat Caballé, que se gabam de ter 200 papéis. O que me importa é a qualidade, não a quantidade.
Folha - O que você vem fazer no Brasil além de cantar?
Ileana - Vou consultar um mago no subúrbio do Rio. Uma pessoa maravilhosa, um velho, que lê o futuro. Sou supersticiosa. Gosto de tarô e adivinhações. Todo artista tem segredos e mistérios.
Folha - Como você pretende conduzir suas aulas em Campos do Jordão?
Ileana - Não tenho a mínima idéia. Sou contra métodos. Hoje em dia existem professores que dizem ao iniciante: "Vou revelar a você os segredos do canto. Basta seguir o meu método." Isso é vigarice. Gosto de ensinar alunos de nível superior porque me ocupo da interpretação. Não vou ensinar técnicas primárias. Gosto de trabalhar com cantores jovens de talento.
Folha - I Vocalisti já tem o programa pronto para o Brasil?
Ileana - Já. Vivemos ensaiando, ou na minha casa ou por aí, quando nos encontramos. Somos todos amigos de muito tempo. Juntos, vamos mostrar as "Liebesliederwalzer Op. 52", de Brahms, com acompanhamento de dois pianos. Cada um vai exibir canções de Schubert, Kodály e Enescu.
Folha - E seu maestro favorito?
Ileana - Você não se cansa de fazer perguntas imbecis? O meu favorito é Carlos Kleiber, mas nem adianta me perguntar, porque eu não vou dizer a razão. Ele é o melhor. É a música.
Folha - Por que você desistiu da ópera?
Ileana - Deixei de ter ambições nessa área e minha disposião não é a mesma da juventude. Não aceito fazer papel de velha. Mas a razão maior está nas montagens da moda, que modernizam a ópera sem critério algum. A pornografia virou "mainstream". A ópera está de cuecas.
Folha - O que você quer dizer com isso?
Ileana - Hoje em dia a maior parte dos diretores de ópera está destruindo o gênero. Outro dia vi em Paris um "Don Giovanni" ridículo. Era dirigido pelo americano Peter Stein. O cantor aparecia de cuecas. Enquanto cantava uma ária, cheirava cocaína no braço. Depois, enfiava a mão dentro do vestido da Zerlina. O Giancarlo Del Monaco dirigiu em Bonn (Alemanha) um "Il Trovatore" modernizado para os anos 40, com todo mundo nu em cena. Onde já se viu?
Esses diretores são idiotas. O público deveria se retirar do teatro no meio da récita e fazer uma manifestação. Mas ninguém faz nada. Tudo isso me enfurece. Não entendo como os cantores aceitam esse tipo de coisa. As cantoras de ópera viraram prostitutas.
Folha - A que você atribui essa moda?
Ileana - À obscenidade social. A gente vê essas coisas acontecerem em toda parte, na TV, na rua, no cinema. A ópera não podia ficar de fora. Temo pelos jovens, que nunca viram uma récita e vão pensar que ópera é pornografia.

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