São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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A foto "de perto" e a foto "de longe"

JUNIA NOGUEIRA DE SÁ

A imprensa foi colocada diante de uma mesma e velha dúvida na semana passada: como tratar a morte violenta de uma pessoa conhecida? Na terça-feira, o jogador Dener morreu num acidente no Rio. Eram 5h15 da manhã, e o corpo do rapaz ficou à disposição de curiosos e da imprensa por quatro horas, deitado no banco do carro em que ele viajava, até ser retirado pelos bombeiros. Nessas quatro horas, só quem não quis não fez uma foto chocante de Dener: cabeça recostada, olhos e boca semiabertos, mãos cruzadas no colo, o jogador parecia dormir. Uma mancha de sangue que descia do nariz e sujava o casaco denunciava sua morte.
Assim como foi descrita, com todos os detalhes e cores, a cena apareceu na quarta-feira na capa de "O Estado de S.Paulo", numa foto que ocupava quatro das seis colunas do alto da primeira página. Era a chamada foto "de perto", e a boa qualidade técnica de impressão com que o jornal tem brindado seus leitores ultimamente deu a ela uma nitidez cruel. Na quinta e sexta-feiras, sua seção de cartas publicou 16 protestos de leitores contra a foto, acusando o "Estado" de fazer sensacionalismo, de desrespeitar a imagem do jogador, a dor da família e a sensibilidade de seu leitor. No sábado, saiu uma única carta apoiando a escolha. Se vendeu alguns exemplares a mais com a foto, o "Estado" certamente desagradou boa parte de seu público, aquele que espera do jornal o comportamento entre comedido e conservador de sempre.
Folha, "O Globo" e "Jornal do Brasil", para ficar apenas na chamada grande imprensa, tiveram a mesma foto mas optaram por cenas menos chocantes -a chamada foto "de longe". "Tentamos fugir do sensacionalismo", diz a secretária de Redação da Folha, Eleonora de Lucena. "O jornal deu a informação, valorizou uma notícia de impacto mas escolheu uma foto de forma a não chocar demasiadamente o leitor." A ombudsman e o Painel do Leitor não receberam, até ontem, qualquer protesto contra a edição da morte de Dener na Folha. Mas três leitores manifestaram à ombudsman sua indignação com o "Estado".
Dizem os detratores do jornalismo que esta é uma profissão de abutres que se alimentam da desgraça do outro, e o episódio protagonizado pelo "Estado" forneceu a eles mais munição para essa tese. Qualquer que seja o argumento usado pelo jornal para justificar a escolha da foto, ele desaparece diante da pergunta: o que é que ela acrescentou ao leitor? A resposta é nada. A cena nem sequer serviu para conscientizar a respeito do bom uso do cinto de segurança, e o jornal reconheceu isso ao publicar, dentro da foto, um diagrama com ilustrações descrevendo o acidente.
Se não tem informação, se não tem "notícia", se apenas choca, uma foto deveria ser sumariamente descartada das páginas do jornal, qualquer jornal. Em respeito, mais do que ao retratado, ao leitor que paga para receber "notícia". Mas há momentos em que o leitor parece contar nada diante dos números de circulação (que subiriam de qualquer modo naquela quarta-feira; Dener não era qualquer um e sua morte certamente vendeu mais jornais). E não há nada que justifique o sensacionalismo como arma de marketing em jornais que se pretendem sérios.

Pode parecer incrível, mas a melhor foto do acidente que matou Dener foi publicada no mesmo "Estado" de quarta- feira, na capa do caderno de Esportes. Ela mostrava o carro, a árvore em que ele bateu, o asfalto da avenida sem marcas de freios, os curiosos em volta, o tamanho do estrago no Mitsubishi do jogador e, discretamente, o próprio jogador morto, deitado no banco. Era uma foto "de longe", mas nela se podia "ler" toda a informação a respeito do que aconteceu com Dener. Sem chocar o leitor, era uma foto jornalística, que não mereceu a primeira página de nenhum jornal. Mesmo porque os outros jornais ficaram num meio-termo vacilante: nem mostraram Dener como fez o "Estado", nem mostraram a cena completa do acidente, como fez o caderno de Esportes do "Estado". Ficaram, como se diz, em cima do muro, com suas fotos "de longe", testando os limites de uma ética que só deveria ter uma finalidade: informar corretamente o leitor sem agredi-lo.

E se é assim, toda a imprensa naufragou nesse caso. Os telejornais, na noite da terça-feira, noticiaram que Dener morreu asfixiado pelo cinto de segurança -o que parece bobagem a qualquer cidadão de bom senso. Na quarta, as versões se multiplicaram nos jornais. Para a Folha, Dener "teve o pescoço comprimido pelo cinto de segurança e fraturou a coluna". Para o "Estado", ele "teve o pescoço quebrado pelo impacto de seu corpo com o cinto de segurança", o que é quase a mesma coisa. Quase.
Nos jornais do Rio, Dener "morreu por causa de uma asfixia por lesão da laringe devido à contusão no pescoço" segundo "O Globo". No "Jornal do Brasil", o cinto de segurança usado incorretamente "fraturou o osso hióide (o gogó) e esmagou a laringe do jogador", o que é quase a mesma coisa. Quase.
A diferença é que, se fraturou a coluna, Dener morreu instantaneamente. Se a fratura da laringe o matou asfixiado, ele pode ter se dado conta do que aconteceu -asfixia, esclarece um perito em medicina legal que consultei, leva alguns segundos para matar. E, nesses segundos, Dener pode ter acordado, o que aumenta a tragédia.
Ao que parece, os jornais não se preocuparam com esse detalhe, nem em consultar o boletim do Instituto Médico Legal dessa que foi a notícia mais chocante da semana. Preferiram fontes secundárias, conclusões apressadas e a voz da própria experiência. Azar seu, leitor.

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