São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Sul-africano vive divisão entre medo e esperança

CLÓVIS ROSSI
DO ENVIADO ESPECIAL

Nem poderia ser diferente: a multinacional italiana de roupas Benetton, ousada na sua publicidade, capturou o que imagina ser o espírito da coisa na África do Sul.
Anúncio repetidamente publicado nos jornais locais, a propósito do fim do apartheid, avisa:
"Cores unidas da Benetton em branco + negro apresentam África do Sul, uma sociedade multirracial".
Bonito e simpático. Mas ainda muito longe de ser uma realidade cotidiana.
A África do Sul que se aproxima das eleições continua sendo uma sociedade profundamente dividida por ódios e ressentimentos seculares.
Os brancos, prestes a perder o poder político, embora mantenham o poder econômico, não escondem um humor negativo, beirando o pânico.
Como tampouco escondem o racismo que lhes ocupa a alma, ainda que suas instituições estejam para ser enterradas de vez.
"Deus nos fez diferentes", diz a viúva Christina Kruger, 73, moradora de um dos elegantes subúrbios de Johannesburgo, que se tornaram o refúgio dos brancos.
"Fazer acordo com os pretos nunca deu certo", diz Humberto Vaz, taxista português que vive há 29 anos na África do Sul.
"Eles nos forçarão a casar com negras. É o seu plano para livrar-se de nós criando uma raça de bastardos", afirma Wynand Malan.
Malan já viveu, faz 30 anos, experiência semelhante de troca de raça no comando de um país.
Morava na então Tanganica, colônia britânica, quando esta se tornou a Tanzânia independente.
"A cor é um fator, mas foi super-enfatizada. Nós pensamos em nós mesmos como africâners, o que é uma questão de cultura e religião, mais do que de raça", diz Eleanor Lombard, ativista do Partido da Liberdade, que reivindica uma terra só para os brancos e boicota as eleições.
Esses sentimentos explicam os dois novos esportes favoritos dos brancos sul-africanos.
Um é o que um anúncio da livraria Fantamania chama de "estoque-mania", ou seja comprar livros em quantidades industriais para sobreviver trancado em casa, se as coisas ficarem ainda mais complicadas.
"Nós fizemos compras para três semanas. Compramos enlatados, pão, leite longa vida, velas", confirma Gillian Dracht.
"Eu só estoquei porque virou uma coisa infecciosa", reforça a professora Jeanette Kuper.
O segundo esporte é fugir do país, embora em escala ainda limitada. Já a partir do ano passado, inverteu-se a histórica tendência da África do Sul de mais receber imigrantes do que despachar emigrantes.
Há os que migram apenas temporariamente, temendo que os dias eleitorais sejam perigosos demais. Como os que compraram um pacote de viagem para as ilhas Comoros, a 3 mil rands cada um (cerca de US$ 860).
Em uma semana, a agência vendeu os 360 lugares disponíveis e 85 ficaram na lista de espera.
A migração não é apenas de pessoas, mas também de capitais. No ano passado, as estatísticas oficiais apontam uma evasão de 16,3 bilhões de rands (cerca de US$ 4,6 bilhões).
Mas um economista do Nedbank, Edward Osborn, garante que essa cifra se deve mais a uma mudança na metodologia da estatística. O número correto seria de US$ 3,1 bilhões. "Mesmo assim, é muito", admite.
É claro, em todo o caso, que nem todos os brancos estão em pânico. "O melhor de tudo é que agora as pessoas poderão viver suas vidas normalmente, sem olhar para a cor de cada um", diz a enfermeira Lucile Bergman, bem sintonizada com o anúncio criado pela Benetton.
"Graças a Deus, agora os negros poderão pelo menos conseguir escolas e casas decentes", reforça o aposentado Esme Heydenrych.
Racismo
"Vai ser preciso que os negros ponham os brancos no seu lugar. Não digo que se deva aniquilá-los, mas talvez se tenha que matar alguns, uma centena delas, para mostrar quem está no comando", afirma Charles Ntuli, desempregado do subúrbio negro de Soweto.
Esperança
"Agora todos nós vamos conseguir empregos porque as companhias norte-americanas virão em revoada para cá", imagina outra habitante de Soweto, Joyce Mabsuela.
Medo
"Tenho dois receios durante as eleições. O de que alguma das minhas cinco filhas seja estuprada e de que alguém tente tomar minha casa", diz a mestiça Lynette Kay.
Medo, de resto, justificado: 24.360 pessoas foram violentadas em 1992, computando-se apenas os casos registrados na polícia. Seria, portanto, um caso a cada duas horas, todos os dias do ano.
Mas há cálculos de que outros 300 mil casos deixam de ser registrados.
A violência sexual não respeita a fronteira racial e tornou-se um pesadelo nacional a tal ponto que chega a superar a busca do anonimato pelas vítimas.
"Queremos que as pessoas saibam o que está ocorrendo neste país. Meu amado país virou uma confusão infernal", disse Johan de Bruin, marido de Betsie, branca, mãe de três filhos, violentada na semana passada.
A violência inevitavelmente gera uma cultura de violência. "O próximo que vier para cima de mim, atiro na cara como se fosse um cachorro", disse Betsie.
A mestiça Lynette, por sua vez, afirma: "Se tentarem tomar minha casa, ponho fogo e destruo tudo".
Cada um atribui a culpa pela violência a um lado. "As causas são muitas, mas a causa central é o apartheid, que institucionalizou a violência", afirma Cyril Ramaphosa, secretário-geral do partido CNA (Congresso Nacional Africano), que deve ganhar a eleição.
Mas os bisnetos de um antigo presidente do próprio CNA culpam esse grupo político. Trata-se de Sefako Mapogo Makgatho, que presidiu o partido por sete anos a partir de 1917.
"Ele ficaria envergonhado pela violência e intimidação" provocada pelo CNA, dizem os bisnetos, em matéria paga na qual anunciam o voto no Partido Nacional, do atual presidente Frederik de Klerk.
Mas a violência tem causas muito mais profundas, enraizadas em crenças seculares.
Exemplo: o diretor de uma escola na Província do Transvaal Norte, extremo norte do país, foi morto dias atrás.
Ele foi acusado de bruxaria, de utilizar os raios, durante as tempestades, para matar ou ferir seus inimigos e de guardar zumbis em casa.
A multidão que o linchou embebeu seu corpo com gasolina e ateou fogo.
"A cada ano, quando a estação de chuvas começa, começam também as mortes", lamenta editorial do jornal "Sowetan", destinado ao subúrbio negro de Johannesburgo. Já foram registrados 60 do gênero só este ano.
Entre crenças que vêm da escuridão dos tempos e que o apartheid, ao bloquear a educação dos negros só consolidou, entre desconfianças, temores e tímidas esperanças, a nova África do Sul ainda está longe de ser "as cores unidas" que pede a Benetton.
Em todo o caso, o presidente de Klerk, que iniciou a desmontagem do apartheid, olha para a frente e diz: "Eu vi o futuro. E ele funciona".(Clóvis Rossi)

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