São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Falta água para 10 milhões; brancos têm 750 mil piscinas

CLÓVIS ROSSI
DO ENVIADO ESPECIAL

Para se entender a tragédia social gerada pelo apartheid, basta uma comparação: existem na África do Sul 750 mil piscinas, ou uma para cada duas famílias brancas –virtualmente as únicas a disporem desse luxo.
Na outra ponta, há 10 milhões de pessoas, quase todas negras, que não dispõem de água potável em suas residências.
Talvez por isso, é na África do Sul que se consegue entender a precisão do termo "apartheid social" que se começou a empregar no Brasil, para designar desigualdades sociais insuportáveis.
O Brasil é, no fundo, uma imensa África do Sul, em que o apartheid que existe é de fato mais social, embora também cruze a linha racial.
Em alguns aspectos, a situação no Brasil é até pior do que na África do Sul.
Tome-se Soweto, o enorme subúrbio negro de Johannesburgo, que capturou a atenção da imprensa do CADERNO ESPECIAL inteiro a partir de 1976, quando explodiu a violência nos protestos contra o regime do apartheid.
Na última quinta-feira, uma equipe do canal 4 da televisão portuguesa foi a Soweto, em busca de imagens, pensando, é óbvio, em mostrar a pobreza.
Primeira parada: uma caçamba de lixo ainda cheia, depositada na calçada de terra batida e sendo vasculhada por duas mulheres.
Para a equipe portuguesa, um bom prato.
Para um brasileiro, uma cena comum, ainda mais depois que uma família foi flagrada comendo carne humana, resto hospitalar atirado em um lixão de Olinda, Pernambuco.
Mais: a maioria das casas de Soweto é sólida, de tijolos, incomparavelmente melhores do que os barracões das favelas de qualquer cidade brasileira.
Os números do apartheid, no entanto, coincidem no Brasil e na África do Sul.
Nesta, 14% dos habitantes detêm 90% da terra e também 90% da economia formal. São quase todos brancos.
Nas cem maiores companhias que negociam suas ações na Bolsa de Valores de Johannesburgo, há apenas 40 diretores negros. Natural, dado o abismo educacional entre brancos e negros.
Para qualquer estatística que se olhe, o cenário é idêntico. Desemprego, por exemplo: 50% dos negros estão em situação de desemprego aberto, sem contar os que vivem da economia informal. Apenas 3% dos brancos estão desempregados.
A violência, tanto a comum como a política, causa muito mais vítimas entre os negros do que entre os brancos.
Em 1991, por exemplo, 14.205 negros foram assassinados, contra 488 brancos.
Ou seja, embora o número de negros seja seis vezes mais alto do que o número de brancos na população total do país, os mortos entre eles é 29 vezes superior ao de brancos.
Os números, em todo o caso, não explicam tudo nem são, necessariamente, o elemento mais importante.
O apartheid deixou, acima de tudo, uma herança de ódio racial tão profundo que não será fácil erradicá-lo apenas com uma simples desmontagem institucional.(CR)

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