São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Euforia da era JK impulsionou abstração

DA REPORTAGEM LOCAL

Foi um escândalo quando a arte abstrata brasileira começou sua trajetória rumo à consagração. Aconteceu na 2.º Bienal Internacional de São Paulo (1953-1954). Volpi (1896-1988) dividiu o primeiro prêmio de pintura com Di Cavalcanti (1897-1976).
Volpi pintava figuras geométricas parecidas com bandeirinhas de São João; Di, a miséria dos pescadores.
Hoje pode parecer bobagem, mas no início dos anos 50 um pintor abstrato era considerado uma espécie de traidor da chamada causa popular.
Dominava o figurino do Partido Comunista Brasileiro, segundo o qual é papel da arte retratar a "realidade" e as mazelas do trabalhador.
A abstração começa a questionar esse dogma, com o argumento de que narrar ou retratar são funções da literatura e da fotografia. Investe contra o mundo artesanal da tela, sem sentido na sociedade industrial, segundo os artistas abstratos. E acaba colocando em xeque a função social da arte.
Os abstratos queriam que a obra fosse produzida em escala industrial ou que o artista se incorporasse à indústria desenhando carro, liquidificador ou luminária.
Foi xeque-mate. O domínio a arte figurativa –com Portinari cumprindo o papel de pintor oficial do governo Vargas, tal qual existia na corte de Luís 15– ruiu como um castelo de cartas. Ruiu por quê?
"Porque havia uma euforia nos pós-guerra que chegou ao Brasil e o país acreditava que podia queimar etapas, fazer 50 anos em 5, construir uma capital modernista e chegar ao Primeiro Mundo", explica Maria Alice Milliet, 51, curadora do segmento "Abstrações" e diretora-técnica do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Foi Juscelino Kubistchek, presidente entre 1956 e 1961, quem ajudou a impulsionar a abstração, com sua crença na racionalidade e no planejamento –coincidentemente, dois pontos do programa dos artistas concretos.
"Para esses artistas não existe mais tema, só a plástica pura. Não existe mais metáfora, o quadro não é a representação de uma paisagem, é só um quadro", afirma Maria Alice.
A busca da plástica pura leva a obra de uma série de mudanças. Desaparece a base das esculturas. Elas são colocadas sobre grama ou cimento e a massa da obra passa a ser perfurada.
Some também a moldura do quadro. "A idéia é que a obra está no mundo e o espaço é o lugar onde a forma se articula", diz a curadora.
Muda também a matéria de que é feita a obra. Usa-se eucatex e tinta industrial. Lygia Clark, que integra o braço carioca do movimento concreto ao lado de Hélio Oiticica, Aluísio Carvão e Ivan Serpa, pinta com pistola de ar comprimido.
A idéia de produzir para a sociedade tecnológica não fica só no discurso. Amilcar de Castro reformula o projeto gráfico do "Jornal do Brasil". Décio Pignatari, que compõe o grupo dos poetas concretos com Haroldo e Augusto de Campos, faz publicidade. Geraldo de Barros cria móveis.
O Brasil parecia viável. Já tinha museus de arte moderna no Rio e em São Paulo, criados no final dos anos 40, a Bienal, fundada em 1951, e até críticos capazes de dialogar com a crítica internacional, o caso de Mário Pedrosa.
No final dos anos 50, dois movimentos começam a questionar a racionalidade dos concretos. Um deles é a abstração mais informal, feita de manchas na tela. Em 1959, Manabu Mabe é premiado na Bienal de Paris. No mesmo ano, é lançado o Manifesto Neoconcreto, questionando a "exacerbação racionalista" do concretismo.
É do movimento neoconcreto –integrado por Ferreira Gullar, Oiticica, Lygia Clark e Amilcar de Castro, entre outros– que nasce a tese de integrar vida e arte.
"Acaba o que se entendia por arte desde o renascimento", diz Maria Alice. "Oiticica e Lygia vão acabar com a materialidade da obra de arte e com a representação porque não querem dar objetos para serem absorvidos pelo sistema".
A utopia, segundo Maria Alice, chega ao fim com o Movimento Militar de 1964. "O golpe de 64 é 'o sonho acabou' dessa geração. O Brasil fundado num modelo de capitalismo avançado começou a fazer água e a circulação de idéias se tornou muito restrita". Era o fim da "era das certezas", um dos sinônimos dos anos 50.

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