São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Curador quer passar arte brasileira a limpo

DA REPORTAGEM LOCAL

Curador quer passar a limpo arte brasileira
Nelson Aguilar, 48, curador da Bienal, quer instituir uma nova ordem na arte brasileira com a "Bienal Brasil Século 20".
Não, nessa nova ordem, Cândido Portinari (1903-1962), não deve ser jogado na lata de lixo da história, segundo Aguilar.
Ele quer tirar Portinari, a imagem oficial do pintor no Brasil, da corda bamba que a crítica o colocou sob a acusação de que seria um modernista acadêmico.
"Portinari é um enigma que se não for decifrado a gente não sabe por que está brigando. É fundamental", diz.
Mas quer incluir Hélio Oiticica no clube imaginário dos maiores artistas brasileiros.
O motivo é a tese de Aguilar que se verá na "Bienal Brasil" a partir de hoje e na 22ª Bienal em outubro. O curador defende na entrevista a seguir que é com Oiticica, Lygia Clark e Mira Schendel que a arte brasileira deixa de seguir modelos estrangeiros e inventa a sua autonomia.
Folha - Não é pretensão demais querer passar a limpo a história da arte brasileira no século 20 com uma exposição?
Aguilar - É, mas se a Bienal não tiver essa pretensão ela estará servindo a maus propósitos.
O propósito da Bienal é favorecer o intercâmbio da arte brasileira com a internacional. Fazer uma retrospectiva é essencial.
Folha - Qual o sentido desta mostra?
Aguilar - Seria o de colocar o público em condições de ter um juízo crítico muito fino da arte brasileira e constituir um intróito para a 22ª Bienal. Vai ser uma espécie de mapa da cidade artística brasileira.
O objetivo é expor como a arte brasileira começa de uma maneira muito mimética no começo do século 20 para no final chegar a uma autonomia tão grande que passa a participar de igual para igual com outros grandes centros.
Folha - Qual é o principal saldo dessa reavaliação?
Aguilar - O módulo dos anos 60 e 70 vai ser muito importante. Pela primeira vez o período foi exaustivamente estudado.
Vai ser muito revelador tanto da interpretação que a arte fez das abstrações, do seu passado imediato, como do futuro. Será a grande surpresa da exposição.
Folha - Por que você não usa o termo "acadêmico" para definir os artistas do começo do século? Visconti e Victor Meirelles tinham algo de moderno?
Aguilar - Tinham. Isso fica evidente no tratamento que o Victor Meirelles dá à cor. Ele está mais preocupado com o dado sensorial do que com o documento.
Essa precedência cromática mostra que ele se desvinculou dos mestres franceses. É um artista que tem muito a ver com a modernidade enquanto projeto de autonomia.
Em Visconti a arte não se reduz à tela, mas abrange inclusive as artes industriais. Ele fez desenho de tecidos, cerâmica, o pano de boca do Municipal do Rio. É um artista completo e, nesse sentido, moderno.
Folha - Por que a arte brasileira segue sempre modelos estrangeiros? Anita Malfatti segue o expressionismo alemão, Tarsila, o cubismo, o concretismo daqui descende do suíço, a Bienal de São Paulo é uma cópia da Bienal de Veneza.
Aguilar - Acredito que na arte moderna existe uma teoria difusionista. Existe uma determinada sensibilidade e dentro dessa sensibilidade é possível construir coisas novas. Foi o que aconteceu no cubismo, no expressionismo.
O expressionismo nada mais é do que um olhar concentrado sobre a produção das crianças, dos povos primitivos, dos doentes mentais. É uma espécie de reserva da humanidade.
A lição do cubismo é criar uma ordem dentro dessa primeira visão da humanidade. Em todo mundo isso aconteceu. Existem cubistas norte-americanos, cubistas mexicanos e cubistas brasileiros.
Folha - Você escreveu que a história da arte brasileira é a história da sua autonomia em relação à Europa e aos EUA. Não seria equivocado pensar a arte brasileira a partir desses centros?
Aguilar - Chega um momento em que a arte brasileira produz a si própria. Isso acontece justamente com Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel. Depois disso tudo é diferente: existe uma produção interna, um projeto autônomo.
Folha - Como Oticica, Lygia Clark e Mira chegam a essa arte autônoma?
Aguilar - Acredito que é através do primado dos dados sensoriais. Todos eles trabalhavam com as sensorialidades.
Através das obras de Lygia Clark, o espectador podia interagir, montar a obra. Mas a partir dos "Bichos" ela começa a tomar consciência da importância da audição, do tato, do olfato para desencadear um novo tipo de conhecimento.
No caso do Hélio, também. Os penetráveis são experiências de uma travessia na qual o espectador deixa de ser espectador, fica descalço, passeia por areia.
Essa automonia, mesmo no caso da Mira Schendel, vem num momento em que o artista acredita absolutamente no que está fazendo e não olha mais para trás.
Acho que é a descoberta de que o público podia participar da obra é que possibilitou o salto. Quando o público tem que entrar na obra, você tem que dimensioná-la de uma maneira completamente nova.
Folha - Esse trio deixa herança para a arte brasileira ou a leva a um beco sem saída?
Aguilar - Todos os grandes artistas jovens brasileiros são tributários desse trio.
Seria muito difícil existir uma instalação como "111" do Nuno Ramos antes das obras que Oiticica fez ao Cara de Cavalo.
Eu acredito que o novo na arte brasileira virá muito em função de novas interpretações sobre esses três artistas, que têm um poder radioativo ainda não domesticado.
Folha - Por que o modernismo brasileiro não conseguiu sua autonomia, não teve a força do europeu e tornou-se acadêmico precocemente?
Aguilar - O modernismo é um momento de autoconhecimento, que passa muito pela questão do nacional. Tanto que eles voltam ao barroco, aos índios. É uma espécie de fechamento, não de autonomia.
Folha - Quando você diz que a arte brasileira só ficou autônoma nos anos 50 significa que devemos jogar Portinari na lata de lixo da história?
Aguilar - Absolutamente. Portinari é um enigma que se não for decifrado a gente não sabe onde está, do que está falando, por que está brigando. É fundamental.
Folha - Por quê?
Aguilar - Porque quebra os cânones do bom gosto, sobretudo no início, quando aparecem os personagens hipertrofiados.
Portinari fez leituras do Lasar Segall, é um artista do expressionismo e também da nova objetividade. No momento em que ele começar a ser interpretado dessa maneira, vai a ser admirado por outros valores.
Hoje ele é um artista em ocultamento. É uma espécie de carta roubada. Mas, por estar muito óbvia, ninguém acha.
Folha - Por que a pintura abstrata enfrentou tanta resistência no Brasil?
Aguilar - Nós sabemos que existiam posições ideológicas que se cristalizaram diante da figuração e da abstração, e isso criou uma dicotomia dentro da arte.
Os comunistas eram figurativos, e os trotskistas eram abstratos. Admirar abstração significava ser um traidor do povo.
Folha - Por que a arte brasileira dos anos 70 e 80 exerce tanto fascínio no exterior?
Aguilar - É por causa da extrema originalidade dos artistas, formados dentro de um novo ponto de partida. As obras de Frida Baranek, de Jac Leirner, do Tunga são tributárias da Santíssima Trindade formada por Lygia Clark, Oiticica e Mira Schendel.
Folha - Numa escala imaginária, Oiticica é mais importante que Portinari?
Aguilar - Vai haver uma ciranda nessa escala imaginária: o Oiticica vai dar a mão para o Portinari.
Folha - Não é uma resposta evasiva?
Aguilar - Não, eu gosto dos dois tremendamente. O Oiticica é o elitista que desce à favela. O Portinari é um camponês que sobe e ocupa as paredes no Museu Nacional de Belas Artes.
Tem alguma coisa, uma intersecção, nessa dupla viagem que cada um faz. Saber onde está esse xis é a questão.

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