São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Tolstoi interpreta a moral cristã

AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No final do primeiro livro do "Contrato Social", de cujo autor Leon Tolstoi estudara com avidez os vinte tomos, em sua juventude, lê-se: "... em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui por uma igualdade moral e legítima o quanto de desigualdade física a natureza pôde por entre os homens que, podendo ser desiguais por força ou gênio, tornam-se todos iguais por convenção e direito".
Entretanto, acrescenta J.J. Rousseau numa ressalva, "Sob os maus governos esta igualdade é aparente e ilusória; ela serve apenas a manter a pobre em sua miséria e o rico em sua usurpação. Nesse caso, as leis são sempre úteis aos que têm e nocivas aos que nada têm...".
Em sua longa vida (1828-1910), na conturbada Rússia de seu tempo, o autor de ' 'O Reino de Deus Está em Vós" teve como acompanhar não um, mas cinco desses governos, todos eles marcados pela usurpação, pela miséria e suas correlatas: a violência e a repressão imutáveis na vida nacional.
Não se deve, portanto, a nenhuma crise moral súbita, no final de sua vida, se Tolstoi se tornou a consciência moral da Rússia, o arauto de uma doutrina anárquica e revolucionária. Nem Tolstoi foi o primeiro. Desde a conspiração dos "Decabristas" de 1925, poucos anos antes do nascimento do escritor, os movimentos libertários se sucederam ininterruptamente na Rússia, contra o czar, contra o Estado, contra a Igreja que o sancionava e que era por ele sustentada.
Niilistas, populistas, anarquistas revezaram-se desde 1840, em seu esforço para eliminar o czar, pregando um socialismo rural, o auto-sacrifício dos mais dotados, sendo presos e dizimados até confluírem, por um lado, nos terroristas e seus herdeiros, os sociais-revolucionários, e por outro, nos sociais-democratas, reunidos em volta do jornal Ískta de Lênin, a partir de 1900.
Obviamente Tolstoi, apesar das muitas idéias comuns, não poderia se aproximar de nenhum desses grupos. Um representante, como ele, da mais alta nobreza, olhava de soslaio para a intelligentsia de origem híbrida, de cujas fileiras sairiam os líderes populistas. Além do mais, ele era um autodidata e um individualista ferrenho. Seus mestres eram os clássicos gregos, que aprendera a ler no original: como Sócrates, identificava o bem absoluto com o conhecimento absoluto.
O conhecimento existe em cada ser humano, é necessário simplesmente saber escutar "a voz interior da consciência" (que para ele tinha semelhança com a razão prática de Kant), sem se deixar ofuscar pelas sofisticações da civilização e pelos dogmas históricos da religião teológica. O sentido da vida era a própria vida. A maior sabedoria consistia em aceitar seu lugar e em tirar dele o melhor partido possível.
Essas são as idéias que ele disseminou em seus grandes romances, como "Guerra e Paz" e "Anna Karênina", onde, porém, os momentos de "conversão" são descritos como uma revelação íntima, incomunicável como toda experiência mística. A "conversão" de Tolstoi era, em grande parte, uma reação de seu racionalismo intelectual contra o irracionalismo da "consciência" humana.
Ao mesmo tempo em que, após 1879 (época de sua crise, conforme alguns biógrafos), continua escrevendo obras-primas de literatura como "Confissão", "A Morte de Ivan Ilitch", "Sonata a Kreutzer", "Khadji Murat" etc., onde a solução do impasse surge como uma iluminação interior, ele cristaliza essas idéias e as organiza numa série de estudos em forma de uma doutrina sólida, um cristianismo racionalizado em que cada detalhe recebe uma base dogmática e de que "O Reino de Deus Está em Vós" é um exemplo eloquente.
O livro rejeita a idéia de imortalidade e se concentra no aspecto moral dos ensinamentos do Evangelho, em particular do Sermão da Montanha, do qual é destacado o mandamento "Não resistirás ao mal (com o mal)", espécie de princípio do qual decorre toda uma argumentação debatida e exemplificada.
Cada situação, segundo esta doutrina, não é mais do que uma etapa do caminho para a perfeição e a felicidade consiste em se aspirar sempre à perfeição indicada por Deus a cada um dos homens: "A perfeição divina é a assíntota da vida humana; humanidade sempre tende para ela; pode dela se aproximar, mas só pode alcançá-la no infinito".
Há três conceitos de vida que servem de base a todas as religiões: o pessoal, cuja religião consiste em "cativar a divindade e prostrar-se diante dos deuses imaginários"; o conceito social, em que o ser humano reconhece a vida em si próprio e num conjunto de indivíduos; a família, a raça, o estado, aos quais sacrifica sua felicidade. O estímulo de sua vida é a glória.
Há, finalmente, o conceito universal ou divino que reconhece a vida em Deus e seu estímulo, o amor. Por amor a Deus é capaz de sacrificar sua felicidade imediata e mudar não apenas o caminho de sua vida, mas com o exemplo, o da humanidade. E a voz de Deus é ouvida através da voz interior da consciência de cada um.

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