São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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A fúria vulcânica de Malcolm Lowry

MARTIN AMIS
DO "THE INDEPENDENT ON SUNDAY"

Os dipsomaníacos nascem ou se tornam assim. Malcolm Lowry, imensamente especializado no campo da dipsomania, parece haver planejado ser assim desde sua infância. O dom não foi herdado. Num de seus primeiros contos, o narrador recorda a desaprovação manifestada por seu pai, metodista, em relação a um advogado local, a quem "faltava disciplina".
"Ele não sabia", escreveu Lowry, "que eu já decidira ser bêbado quando crescesse". Enquanto a maioria dos garotos sonhava ser maquinistas ou vaqueiros, Malcolm sonhava ser alcoólatra. E o sonho se concretizou. Excluindo algumas fases sóbrias passadas em hospitais ou prisões e a muito ocasional abstinência auto-imposta, Lowry passou 35 anos bêbado.
Quanto precisamos saber sobre a vida pessoal de um escritor? A resposta é que não importa. Como disse Northrop Frye, a única evidência que temos da existência de Shakespeare, além dos poemas e das peças, é o retrato de um homem que claramente foi um idiota. As biografias existem para os curiosos, e a curiosidade termina onde começa o tédio.
O autor de "Under the Volcano" (À Sombra do Vulcão) é um caso à parte. Seu vício se converte em nosso vício. A biografia é completa e meticulosa, ao mesmo tempo fascinante e fascinada. Não precisará ser refeita.
Como Isherwood, Lowry era o tipo de inglês que precisava sair da Inglaterra mais cedo ou mais tarde, de preferência mais cedo.
Aos 17 anos Lowry foi para o leste, à China, trabalhando num navio; um ano depois foi para o oeste, para a América. Mas foram o norte e o sul que acabaram se revelando os pontos cardeais importantes de sua bússola pessoal.
O sul significava o México, cena de suas explosões desordeiras mais vergonhosas. O norte começou por significar a Escandinávia mas acabou sendo Vancouver e uma cabana de dois cômodos nas imensidões geladas e solitárias. Apenas ali ele conseguia escrever.
Antes que seu longo exílio pudesse começar (nada o atrairia de volta à Inglaterra, exceto a assistência médica gratuita), Lowry teve que tropeçar pela universidade e depois passar dois anos na companhia de uma sucessão de poetas que não davam certo e briguentos resenhistas de livros. Seus interesses eróticos, assim como os literários, eram vitais a seu senso de si próprio –ao romance interno–, mas nada o fazia desviar-se de sua dedicação ao álcool.
Sobre uma sessão de proezas eróticas em companhia de uma célebre "vamp" de Cambridge, Lowry escreveu: "Charlotte ... me ofereceu seu corpo .... bebi muito uísque .... e quase vomitei dentro de sua boca quando a beijava. Ela diz que me ama".
Seu talento era precoce: aos vinte anos Lowry não se contentava com as farras e os desaparecimentos costumeiros, mas já experimentava alucinações paranóicas envolvendo salamandras e enfermeiros. Quando chegou ao México (aos 26 anos), já engolia qualquer líquido que aparecia à sua frente, apostando na possibilidade de que contivesse álcool.
Assim se passam os anos adultos de Lowry: prisões, exílios, encarceramentos, expulsões, gritos na noite, vistos de entrada expirados e passaportes perdidos, além de uma folha corrida cada vez mais longa de incêndios premeditados, furtos e graves danos físicos, todos cometidos no âmbito doméstico. Em 1938 sua primeira mulher, Jan, lhe impôs um "racionamento" de um quarto de galão (equivalente a 0,95 litro) de bebida alcoólica por dia, mas ele passou a guardar dinheiro para comprar "vinhos reforçados que custavam apenas 50 centavos por galão".
Em 1947 sua segunda mulher, Margerie, notou que Lowry, após um período de abstinência, começara a tomar um coquetel antes do almoço –"e seus coquetéis pré-jantar começavam já às 3h da tarde". Em 1949 ele tomava uma média de três litros de vinho tinto por dia, além de dois litros de rum. Suas varizes se estendiam da virilha até o calcanhar. Certa manhã ele caiu no chão e "vomitou sangue preto". Depois disso testemunhamos a camisa de força, a cela acolchoada e a discussão séria sobre os prós e contras da lobotomia.
Perto do final, até os acidentes estranhos e as múltiplas catástrofes sofridas por Lowry assumem um ar da mais tediosa monotonia. Ao que parece, uma hora média em sua vida incluía um vidro de Windowlene ou Optrex, um acidente sanguinário com uma serra ou uma betoneira e uma tentativa fracassada de guilhotinar sua mulher.
Em torno de Malcolm e Margerie, tudo que poderia dar errado realmente dava errado. Ele leva um tombo na banheira e rompe um vaso sanguíneo: "Ela tentou ligar para o hospital, mas o telefone estava quebrado; correu para o elevador, e este quebrou entre dois andares". Lowry leva um tombo numa trilha campestre e fratura a perna; ela corre até a loja mais próxima e é "gravemente ferida" pelo cão de um vizinho. Alguns amigos do casal conservavam sempre uma mala cheia ao lado da porta de frente da casa, para que possam alegar que estão prestes a viajar se os Lowry aparecessem, desagradavelmente, esperando poder ficar.
Como sempre, o contexto biográfico revela ser o menos adequado para qualquer consideração de sua obra. É claro que descobrimos alguma coisa sobre os "hábitos de trabalho" de Lowry, que incluíam o plágio habitual em escala surpreendente. O plágio é o crime perfeito para o masoquista: o refugo pode trocar de mãos livremente, mas qualquer coisa que vale a pena ser roubada carrega sua própria garantia de detecção e desmascaramento. Lowry foi desmascarado muitas vezes. O livro se chama "Pursued by Furies" (Perseguido por Fúrias), mas o caminho de Lowry foi na realidade amansado por graças: uma pequena fonte de renda particular, mulheres dedicadas, talento. Apesar disso, ninguém desejaria que o tom horrorizado mas de modo geral tolerante de Bowker se acirrasse. As fúrias eram internas. Escrever era um ato ao qual Lowry era compelido e que o mortificava. Olhando em retrospectiva, em meio aos cacos viscosos de sua vida, você se indaga como ele pôde ter escrito qualquer coisa –como conseguiu assinar um cheque ou deixar um bilhete ao leiteiro.
A única coisa que funcionava era a cabana à beira d'água e suas simplicidades extremas. O alcoolismo recordado na sobriedade: cercado pela clareza celestial do norte, ele conseguia recriar o suor e a corrupção do sul. Lembro de "Under the Volcano" como como uma enxurrada de consciência. Agora me parece formal, literário. É o que Lowry jamais poderia ser: é lúcido e lógico –é comportado.
Tradução de Clara Allain

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