São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Os bastidores do ianoblefe

JANER CRISTALDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O ano de 1993 ficará na história do jornalismo como o do maior blefe já registrado na imprensa nacional e internacional, o "massacre" dos ianomâmis que, mesmo sem ter ocorrido – até hoje não se tem prova material alguma de qualquer chacina – provocou lesões irremediáveis na imagem do Brasil e terá reflexo no desmembramento territorial do país.
A justiça brasileira demorou um ano e alguns dias para oficializar a morte de Ulyses Guimarães, a 12 de outubro de 1992. Há foto de deputado entrando no helicóptero que caiu no mar, foram encontrados os corpos do piloto e de sua mulher, há uma evidência absoluta da morte do parlamentar. Somente em 24 de setembro de 1993, sua morte foi reconhecida por um juiz. Oficialmente, só foi considerado morto em 15 de outubro de 1993, quando o despacho do juiz foi publicado no Diário Oficial da União. A demora de um ano para o reconhecimento de uma morte evidente deve-se ao fato de que o cadáver não havia sido encontrado.
As autoridades brasileiras, em 24 horas, definiram como genocídio um suposto massacre sem cadáver, "ocorrido" na Venezuela. Tivemos 19 mortos, depois 40, depois, 73, depois 89, depois 120, depois 16, quando de fato não houve – e até hoje não há – nenhum cadáver. Achou-se uma ossada, de data de morte incerta que não evidenciava massascre.
O então ministro da Justiça, Maurício Corrêa, contentou-se com esta ossada antiga para denunciar de imediato, genocídio. A Polícia Federal, apesar das continuadas declarações de que não havia provas do crime, não hesitou em fazer um relatório, denunciando 23 garimpeiros pelo assassinato de 16 índios, dos quais não se tem um pedaço de osso. Há fotos de cabaças que conteriam as cinzas dos corpos cremados. Mas não podem ser examinadas são "sagradas". Sem prova alguma de nada, a Procuradoria da República denunciou por crime de genocídio 24 garimpeiros que podem ser condenados a 30 anos de prisão.
Na falta de cadáveres, recorre-se ao testemunho do antropólogo norte-americano Bruce Albert, para dar um fecho de ouro ao "affaire". Bruce Albert apenas traduz o relato de índios que teriam sobrevivido. Com exclusividade, a "Folha de S. Paulo" (03.10.93) contou a "história secreta do massascre".
Bruce Albert defendeu sua tese de doutorado, "Temps du Sang, Temps des Cendres" (833 págs.) na Universidade de Nanterre, Paris. Mais uma vez a vida imita a arte: tempo de sangue, tempo de cinzas. O antropólogo, biógrafo oficial de Davi Kopenawa (que quer se candidatar a deputado federal neste ano) brande sua tese: "Nas grandes cerimônias funerárias intercomunitárias que irão organizar em homenagem aos mortos, as cinzas dos adultos serão enterradas junto às fogueiras domésticas de seus parentes e das crianças serão tomadas com mingau de banana. Nessa ocasião, as cabaças, cestas e todos os objetos que pertenciam aos mortos serão queimados ou destruídos."
Ou seja: não há cadáveres porque foram reduzidos a cinzas. As cinzas não podem ser examinadas porque serão destruídas em ritos funerários. E os assassinos – os garimpeiros em geral – devem ser impedidos de entrar em "território ianomâmi", conclui o cidadão norte-americano que, goza de fé pública ante as autoridades brasileiras.
Onde estão as pernas, braços, cabeças cortadas e fetos arrancados de ventre de mulheres grávidas, denunciados à agência "Ansa" por Aristides Junqueira? Onde estão os 19, 40, 73, 89, 120 e finalmente 16 cadáveres dos chacinados? Onde estão os três corpos encontrados pela PF e Funai?
A Polícia Federal brasileira investigou supostos crimes na Venezuela. Esta palhaçada – nem o ministro da Justiça sabia em que país estava quando visitou o local do "crime" – geral algumas indagações. Desde quando um crime cometido em país estrangeiro é tipificado pela legislação brasileira e investigado por policiais brasileiros? Desde quando fotos de cabaças que conteriam cinzas dentro constituiram provas para qualquer tribunal? Como é possível cremar cadáveres –que em fornos modernos exigem 1.360 graus centígrados durante duas horas, deixando resíduos de dois quilos de ossos misturados com restos de carne – em fogueiras rápidas no solo úmido de uma floresta tropical?
Já existem no Brasil legislações distintas para índios e brancos. Índio tem foro privilegiado. Pode matar, estuprar, devastar a floresta. Se branco faz o mesmo, é criminoso. O caso do cacique caiapó Paulinho Paiakan é exemplar. Saudado pela imprensa americana como o "homem que pode salvar a humanidade", estuprou uma menina com a cumplicidade de sua mulher, e ambos permaneceram livres. A polícia anda à cata do assassino de Chico Mendes, foragido e em lugar incerto e não sabido. Mas não prende Paiakan, em lugar certo e sabido.
Quando o sertanista Gilberto Pinto foi trucidado pelos waimiris-atroaris em 1974, descobriu-se que até então os índios haviam matado nada menos que 62 funcionários da Funai. Toda vez que ocorria uma chacina, a Funai oferecia novos presentes aos índios. Em declarações à imprensa, disse um major-engenheiro do Sexto Batalhão de Engenhaira: "O índio passa a acreditar que o mal que ele praticou é um bem para os brancos. E volta a praticar novas chacinas, novos assaltos."
A propósito, é bom lembrar o que disse Gilberto Pinto, sobre estes heróis rousseauneanos tardios:
"Eu nunca duvidei da tenaciade e ferocidade desses índios. É claro que essa minha observação jamais – até quando eu for funcionário da Funai – poderá ser dita ou publicada. Isto só prejudicaria o trabalho de aculturação até agora realizado junto aos waimiris-atroaris. Sou criticado e até ameaçado pelas famílias dos trabalhadores que tombam diante das flechas malígnas desses índios, algozes e violentos, mas sei que estou cumprindo o meu dever. Um dia eles hão de compreender o sacrifício. Já não penso na família, nos meus nove filhos. Só penso na paz que eu poderei dar um dia a esses índios, mesmo sabendo de seu caráter violento, da sua rebeldia, de sua vontade de matar o branco.
"O índio waimiri-atroari é um ser tão sensível – como todos os índios– que um menor olhar diferente do branco é suficiente para ferir a sua sensibilidade. Eu nunca quis saber porque os índios matam ou deixam de matar. Eles sempre deixam alguém para contar a história. Eu sei que, se eu perguntasse, eles se revoltariam, mas a Funai sempre quis que eu os interrogasse para saber as causas que os levaram a chacinar os trabalhadores. Eu não faço isso. Depois de qualquer chacina eu volto ao Alalau ou Abunari com a mais absoluta confiança nos índios."
Em 1980 foram massacrados pelo menos 30 peões pelos índios, em duas chacinas distintas, uma delas no Parque Nacional do Xingu, liderada pelo cacique txucarra-mãe Raoni. Na ocasião, Raoni exibiu nos jornais a borduna que "ajudou a matar 11 peões de uma fazenda". Não só permaneceu impune, totalmente alheio à legislação brasileira, como foi recebido com honras de chefe de Estado na Europa. François Mitterrand e os reis da Espanha, entre outros, o receberam como líder indígena. Raoni se deu inclusive ao luxo de expor sua pintura em Paris. Um dos quadros do assassino atingiu US$ 1.600 em uma lista de preços que começava a partir de mil dólares. Não bastasse o sucesso do vernissage de Raoni, a empresa K-Way Internacional lançou uma linha de roupas com a grife Raoni e pediu ao "novo artista" que pusesse no papel as pinturas corporais de sua tribo, ostentadas por mulheres e homens durante as cerimônias de purificação, início da temporada de caça ou para afastar os maus espíritos.
No caso da "chacina" dos ianomâmis, em várias versões há a morte de garimpeiros pelos índios. Nenhum inquérito, nenhuma invetigação foi feita sobre este fato que – tendo ou não ocorrido, foi aventado inclusive por Bruce Albert – em qualquer legislação de país civilizado, constitui crime. Organização alguma de direitos humanos manifesta qualquer preocupação pela sorte de pobres diabos que, largando família, mulher e filhos, vão cavoucar ouro na selva. Outro que não é roubado dos índios. Os bens do subsolo pertencem – ou pertenciam – à União.
Índio algum foi punido pelo assassinato dos 62 funcionários da Funai ou pelos 30 brancos mortos nos massacres de 1980. Em que prisão está quem perfurou com flechas o peito e o fígado do sertanista Gilberto Pinto?
Mesmo que cadáver algum tenha sido encontrado nesta chacina de itararé, a dos ianomâmis, resta no ar a hipótese – vaga e que não legitima denúncia alguma de massacre ou genocídio – de que algumas mortes tenham ocorrido. Antes de atribuí-las a garimpeiros, a Polícia Federal e a Funai fariam melhor ter lido Yanomamö, do antropólogo americano Napoleon Chagnon, que estuda o problema há três décadas e viveu cinco anos em aldeias ianomâmis.
Em seu ensaio, onde estuda grupos ianomâmis na Venezuela, onde teria ocorrido – se tivesse ocorrido – o massacre, Chagnon descreve um povo primitivo que faz a querra para obter as mulheres do inimigo morto. Falando de sua experiência junto ao grupo do ianomâmi Kaobawa, diz o antropólogo:
"1. Aproximadamente 40 % dos machos adultos participaram do assassinato de outro ianomâmi. A maioria destes (60%) matou só uma pessoa, mas alguns homens foram muitas vezes guerreiros bem-sucedidos e participaram do assassinato de mais de 16 outras pessoas.
"2. Aproximadamente 25% de todas as mortes entre machos adultos são devidas à violência.
"3. Aproximadamente dois terços das pessoas de 40 ou mais anos perdeu, devido à violência, pelo menos um dos seguintes tipos de parentes biologicamente próximos: pai, irmão ou filho. A maioria deles (57%) perdeu dois ou mais parentes próximos. Isto ajuda a explicar porque um grande número de indivíduos são motivados à vingança.
Para Chagnon, sua mais insólita e impressionante descoberta é "a relação entre o sucesso reprodutivo entre os ianomâmis. Unokais (homens que mataram) têm mais sucesso em obter esposas e, consequentemente, têm maior descendência que os homens de sua própria idade que não são unokais.
"A explicação mais pausível para esta relação parece ser que os unokais são socialmente recompensados e têm mais prestígio que os outros homens e, por estas razões, são geralmente mais aptos a obter esposas extras através das quais têm número de filhos além da média."
Chagnon nos mostra um agrupamento de indivíduos no qual a violência física e o assassinato fazem parte do cotidiano. Os ataques a aldeias vizinhas para matar um ou mais habitantes e raptar mulheres constituem práticas normais para os guerreiros. A criança não desejada é morta após o parto. As mulheres são espancadas e mesmo cortadas com facões e machados e inclusive recebem flechadas em áreas não-vitais, como nádegas ou pernas. Quando não são assassinadas. O autor nos narra o diálogo entre duas mulheres, que discutem suas cicatrizes no couro cabeludo. Uma considera que o marido da outra deve gostar muito dela, já que a espanca tão frequentemente.
Nas reportagens sobre a "chacina" que inundaram os jornais, invariavelmente os garimpeiros foram jogados no rol dos vilões, a tal ponto que a palavra garimpeiro foi associada a criminosos, "esquartejadores de mulheres e crianças, espíritos comedores de gente", como declarou Bruce Albert. No lado do Bem permanecem os inocentes ianomâmis, a Igreja, a Funai e as ONGs querem preservar congelados no tempo, em uma espécie de zoológico para comtemplação dos deslumbrados do futuro.
A quem aproveita a "chacina"? Como pano de fundo, temos a luta pela posse da Amazônia, que o Brasil não soube ocupar. As Organizações Não-Governamentais – que de não-governamentais nada têm – hoje transitam livremente nas reservas indígenas, o que é vedado ao cidadão brasileiro. Enquanto na Europa são derrubadas fronteiras externas, no Brasil são criadas fronteiras internas. Um genocídio – mesmo fictício – uma vez denunciado na imprensa internacional, é um excelente pretexto para exigir a intervenção das tropas da ONU em território brasileiro. Ou as Forças Armadas previnem esta conspiração de antropólogos, ou em breve teremos os "capacetes azuis" na Amazônia.

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