São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ensaístas promovem uma demolição de Nietzsche

SCARLETT MARTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pensar com Nietzsche contra Nietzsche é o que se propõem os autores de "Por Que Não Somos Nietzscheanos". É através de um acerto de contas com os nietzscheanos franceses de hoje que eles pretendem romper com filósofo do século passado. E isto significa voltar contra seus mestres, Foucalt, Deleuze, Derrida e outros, as armas que estes lhes ensinaram a manejar.
Há 20 anos, no Colóquio de Cerisy, Deleuze perguntava o que é ser nietzscheanos: preparar um trabalho sobre Nietzsche ou produzir, no curso da vida, enunciados nietzscheanos? Naquele momento, suas investigações não se norteavam tanto pelas idéias do filósofo quanto pela perspectiva que elas apontavam. E Deleuze deixava claro que o autor de "Zaratustra" não se prestava a comentários, como Descartes ou Hegel. Não se tratava, pois, de pensar a atualidade de seus escritos, mas de pensar a atualidade através deles.
Hoje, alguns pensadores franceses da nova geração também entendem que nietzscheano não é o comentador que se debruça sobre os textos para explorar as idéias, desvendar os procedimentos lógicos. Tampouco é o pensador que trabalha com conceitos para revelar a artimanha da obra, trazer à luz a astúcia do autor. Nietzscheanos são intelectuais que, durante as duas últimas décadas na França, privilegiaram a vertente corrosiva do pensamento de Nietzche. São os que o incluíram, ao lado de Marx, Freud e Heidegger, entre os "filósofos da suspeita" entenderam a filosofia como "exercício infinito da desconstrução"
Reivindicando "a exigência ancestral da racionalidade", os autores do livro pretendem pensar com Nietzsche contra o nietzscheanismo; melhor ainda, contra uma determinada apropriação das idéias do filósofo. E pensar com Nietzsche significava levar a sério suas afirmações.
Procurando estabelecer uma relação polêmica com a filosofia nietzscheana, eles querem avaliá-la a partir daquilo que, acreditam, abre uma perspectiva verdadeira: a definição popperiana de ciência (Boyer), Wittgenstein (Descombres), a ética da comunicação (Raynaud). Mas, ao adotarem um ponto de vista exterior, por mais justificado que este seja, não contribuem para uma leitura compreensiva da obra de Nietzsche.
"Por Que não Somos Nietzscheanos" reúne artigos desiguais, que abordam temas diversos, adotam posições teóricas variadas e revelam níveis de competência diferenciados. Assim Legros, examinando a noção de vida, aponta, com brilho, a tensão que atravessa os escritos do filósofo: de um lado, a recusa da metafísica e, de outro, o retorno das oposições metafísicas tradicionais. Raynaud, por sua vez, apresenta o pensamento de Nietzsche como o protótipo da crítica dos tempos modernos, com a perda do cosmos e o aparecimento da nova figura da subjetividade..
Ferry e Raynaud consideram que o autor de "Zaratustra" não passaria de restaurador de uma tradição, ou de um nostálgico, cujo intuito consistiu em fazer surgir, através do combate à modernidade democrática, o análogo contemporâneo de um universo tradicional. Já Targuieff, inscrevendo o filósofo no pensamento tradicionalista, apóia-se em citações extraídas da "Vontade de Potência", sem levar em conta que esse livro foi forjado pela irmã de Nietzsche.
E Comte-Sponville, que propôs a coletânea, denuncia o imoralismo, o irracionalismo e o esteticismo do filósofo. Fazendo recortes arbitrários nos textos, descontextualizando as citações, reaviva a imagem de Nietzsche racista e anti-semita, fruto de uma leitura ligeira e superficial.
Desprovidos em sua maior parte de rigor analítico, os artigos dessa coletânea não cumprem o que prometem: opor o comentário dos escritos em alemão à sua interpretação pelos nietzschianos franceses. Se, como afirma Boyer, "é preciso parar de 'interpretar' Nietzsche e tomá-lo ao pé da letra" (p. 15), não seria mais procedente fazer de sua obra objeto de investigação meticulosa, tratando com seriedade suas idéias?
Mas não nos enganemos. Porque não somo nietzschianos, para além da aparente catarse, tem um objetivo político muito preciso: demarcar território, conquistar espaço no cenário intelectual francês. E, para tanto, nada mais eficiente que a polêmica. Se a obra possui qualidade do panfleto, isto é, a veemência, seu maior defeito reside em manifestar a alergia por Nietzsche, com o ímpeto de contrapor-se aos nietzschianos franceses ela tem seu lugar no quadro, limitado nas querelas parisienses sobre Ferry e Renaut "o chamam pensamento de 68".
No Brasil, ainda hoje se impõe uma certa leitura francesa de Nietzsche, que faz perder a riqueza de sua filosofia. Esperamos que esse livro não venha apenas substituir um equívoco por outros tantos, mais graves e numerosos. Está na hora de enfrentarmos, sem intermediações, a provocação da fala de Nietzsche: corrosiva, mas também construtiva.

SCARLET MARTON é professora do departamento de filosofia da USP, autora de "Nietzsche uma filosofia a marteladas" (Brasiliense) - "Nietzsche - A transvaloração dos valores" (Moderna).

Texto Anterior: Os bastidores do ianoblefe
Próximo Texto: Pope e o gosto neoclássico
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.