São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
Próximo Texto | Índice

Dumping social

CELSO LAFER

Depois da conclusão da Rodada Uruguai, um dos temas que vem sendo aflorado, no campo econômico internacional, é o do assim chamado "dumping social". O encaminhamento do tema pelos países desenvolvidos, notadamente os EUA e a União Européia, articula num contexto interno de preocupação com o desemprego a relação entre comércio internacional e custos de mão-de-obra.
Nesta linha de raciocínio, alega-se basicamente que num mercado que se globaliza, favorecido institucionalmente pela transformação do Gatt numa Organização Mundial do Comércio, a "competitividade" de uma concorrência apropriada requer uma harmonização dos custos do fator trabalho.
A resposta a este raciocínio tem sido no sentido de sublinhar: 1) que a globalização, em escala mundial, tem abrangido bens, capitais, serviços, mas não pessoas e 2) que as diferenças salariais são significativas no âmbito interno dos Estados e dos espaços econômicos integrados como a União Européia.
Em outras palavras, as restrições existentes no mundo à livre circulação das pessoas, derivadas das preocupações com as migrações, têm como consequência reservar mercados para a mão-de-obra nacional, notadamente nos países desenvolvidos. Com isto realça-se o fato de que o mercado nunca é "perfeito" e que suas "imperfeições" são uma expressão da política, no caso o receio, nos países desenvolvidos, da invasão da mão-de-obra dos "novos bárbaros" do mundo subdesenvolvido.
A esta observação cabe acrescentar que os salários e as condições de trabalho variam muito, por exemplo, dentro dos Estados Unidos e no âmbito da União Européia, bastando, neste último caso, contrastar a Alemanha e a Grã-Bretanha, para não citar Portugal, Espanha ou Grécia. É por esse motivo que os países em desenvolvimento têm afirmado que o tema do "dumping social" é uma nova modalidade de protecionismo.
Assim, ao discursar em 14 de abril de 1994, na Conferência de Marrakesh (Marrocos), o chanceler brasileiro Celso Amorim observou que a agenda da nova Organização Mundial do Comércio não deverá ser sobrecarregada com um tema que traria, se levado adiante, a exportação do desemprego dos ricos para os pobres, impondo a estes um encargo social que não têm como suportar; que não lida, na sua formulação, com a relação intrínseca entre livre comércio e imigração; e que finalmente geraria, se implementado, um "protecionismo global" ao abrir as portas para as exportações de bens de tecnologia avançada dos países desenvolvidos, fechando-as para as exportações competitivas dos países em desenvolvimento.
O tema do "dumping social", por exprimir as realidades de um mercado que nunca é perfeito –pois o mercado não opera no vazio, mas na moldura jurídica que resulta dos dados da organização política do sistema internacional–, articula-se através da construção de um contencioso econômico na agenda internacional. Como efeito, a diplomacia econômica é frequentemente a explicitação da concorrência imperfeita ou a de concepções do que é a concorrência perfeita.
Neste contencioso que está sendo armado, penso que a posição brasileira e as suas razões podem ser estruturadas não apenas com base nos argumentos acima mencionados, que exploram pertinentemente as "imperfeições" do mercado na perspectiva Norte/Sul, mas também com base na conjugação da relação entre mercado, democracia e direitos humanos que se insere na lógica da globalização pós-Guerra Fria.
Em síntese, não existe "dumping social" quando num regime democrático as relações de trabalho atendem a um "standard" internacional consagrado no plano interno pela positivação dos direitos econômicos e sociais. Este "standard" vem sendo elaborado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) que foi criada depois da Primeira Guerra Mundial, precisamente com este objetivo. Se existe num país, como é o caso do Brasil, a tutela da liberdade de associação sindical, do direito de greve, da jornada de trabalho delimitada, do descanso semanal remunerado, das férias, da distinção entre horas extras e horas normais, de mecanismos de seguridade social, da limitação ao trabalho de menores etc., ou seja, basicamente aquilo que vem previsto nas convenções da OIT –as relações e a organização de trabalho estão pautadas no mercado interno pela prevalência da democracia e dos direitos humanos.
Os Estados Unidos e a União Européia, que têm feito da afirmação da democracia e dos direitos humanos no campo dos valores, e dos méritos do mercado no campo econômico, vetores de sua ação diplomática, em função mesmo das disparidades salariais existentes no seu próprio âmbito interno, não têm como, em boa-fé, contestar este argumento que desqualifica, com base no mérito e nas realidades, a tese do "dumping social".

Próximo Texto: Uma nota de esperança
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.