São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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Uma nota de esperança

BORIS FAUSTO

Em meio ao clima reinante de tempestade, e de indignação sincera ou fingida com relação aos problemas do país, insinua-se uma nuvenzinha de esperança. Ela é tanto mais promissora quanto não se apóia apenas no desejo, mas em alguns fatos.
Ficando no terreno político, a última pesquisa eleitoral publicada por esta Folha constitui uma das fontes de otimismo. Se a tendência indicada se confirmar ao longo dos meses, teremos uma polarização do voto em dois candidatos: Lula e Fernando Henrique. Essa polarização não representa pouca coisa; é um avanço considerável nas opções do eleitorado. Mantida a tendência, ela significará a rejeição do que resta de um populismo arcaico e de um impetuoso candidato, com fortuna e métodos colocados sob fundadas suspeitas.
No curso da campanha, vão surgir, inevitavelmente, acusações de ordem pessoal contra os candidatos em melhor posição. Fernando Henrique será o mais visado, até porque a indigna retaliação que atingiu Lula em 1989 agora já não produziria efeitos. Mas, na realidade, nem um nem outro dos candidatos na dianteira incorre em suspeita séria da prática de corrupção. Do ponto de vista ético, o que não é pouco, quem está nos primeiros postos merece neles estar.
Ao mesmo tempo, a opção eleitoral revela a extrema dificuldade de um candidato nitidamente conservador se firmar, sem que se elimine a importância do voto desta natureza, proveniente aliás não só de parcelas da elite, como das camadas mais pobres da população.
Sob o aspecto das organizações partidárias e das respectivas personalidades, Lula e Fernando Henrique são duas figuras expressivas das correntes de renovação política do país. Não custa lembrar que Lula nasceu do sindicalismo independente, forjado nas sombras do regime autoritário, projetando-se –ele e o PT– como expressão dos trabalhadores organizados. O salto de Lula, do sindicalismo à política, visto com ceticismo por muitos, rompeu uma barreira histórica que parecia intransponível.
De outro lado, Fernando Henrique é uma figura intelectualmente brilhante, com um passado comprometido com a luta pela democracia e pela reforma social. Ele realizou também um salto aparentemente inviável, do mundo acadêmico para o mundo político, onde se firmou a partir de um difícil aprendizado.
Estes são pontos positivos do quadro sucessório que a discussão purista sobre as alianças partidárias e as manobras eleitorais tende a obscurecer. Sem querer entrar muito neste terreno, as alianças PSDB-PFL, PT-PCdoB, ou as articulações de Lula para garantir o apoio da Igreja Católica aparando as arestas de um programa, são compreensíveis para quem aceita os imperativos da disputa partidária e não espera da política uma pureza inexistente em outros campos da vida social.
A confirmar-se a tendência do voto, estaríamos então diante de uma festa de unanimidades, sendo as duas opções muito próximas uma da outra? Longe disso. Perfis muito diferentes, bases sociais e programas diversos separam os dois candidatos. Ambos têm aliás uma oportunidade única para elevar o debate eleitoral como fonte de esclarecimento, tirando os programas políticos do pântano a que foram atirados por uma justificada rejeição popular.
A discussão substantiva entre os candidatos permitiria ao eleitor decidir quem revela segurança, maior conhecimento, maior experiência para restaurar a autoridade governamental, diluída por tristes figuras desde o governo Geisel, qualquer que seja nossa antipatia pelo regime autoritário. Do ponto de vista programático, estão em confronto perspectivas diferentes quanto ao plano de estabilização financeira, o acordo da dívida externa, a reforma da Previdência, os direitos do funcionalismo, a continuidade das privatizações etc. etc. Por trás de cada um desses tópicos, desenha-se a discussão maior sobre o perfil de reconstrução de um Estado que atravessa uma crise aguda, de longa duração.
Se os dois candidatos conseguirem manter o confronto neste terreno, poderão transformar a campanha eleitoral em um veículo de esclarecimento da opinião pública, o que não impede o uso da retórica, a capacidade de se comunicar e de convencer, a ironia bem colocada, mas recusa a guerra suja.
Seria ingênuo acreditar que a guerra suja não vai ser desfechada. A recente troca generalizada de ofensas verbais, entre os candidatos, provoca apreensões. Além disso, as campanhas eleitorais, no Brasil como em outros países, com raras exceções, lembram mais o botequim da esquina do que a velha sala de visitas. Nem faltam, no mundo político, os Marronzinhos metidos no disfarce de roupas bem talhadas.
Mas, se Lula e Fernando Henrique se propuserem a neutralizar a utilização de expedientes indignos e estabelecerem um novo patamar de princípios, na disputa eleitoral, como Fernando Henrique já se dispôs enfaticamente a fazer, teremos avançado muito no terreno tortuoso da nossa cultura política.
Seria uma razão a mais para fortalecer uma cautelosa esperança e para acreditar que a nuvenzinha não desaparecerá no horizonte.

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