São Paulo, domingo, 24 de abril de 1994
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"Fim do jeitinho só piora o país"

BOB FERNANDES

" A Descoberta da América pelos Turcos", que está nas livrarias, é o 32.º livro de Jorge Amado. O autor de "Capitães de Areia" ( 1,9 milhão de exemplares vendidos), "Tocaia Grande" (1,5 milhão) e "Gabriela Cravo e Canela" (600 mil) condena o legalismo, a "mania de delação" e ameaça de extinção do "jeitinho brasileiro ".
Aos 82, o escritor baiano lamenta o fim do amor livre e diz que nunca usou camisinha.
"Sou um homem muito mais livre do que quando eu era jovem e ainda pensava que a posição ideológica era avanço. Os comunistas são, em geral, muito preconceituosos. Hoje, acho que a ideologia é a desgraça de nossa época"

Romance iniciado há dez anos, "Boris, o Vermelho", não sai da cabeça de Jorge Amado, que pretende terminar de escrevê-lo a partir de julho. Enquanto Bóris não volta e no intervalo das viagens de lançamento do romance "A Descoberta da América pelos Turcos", sobre a chegada e a vida dos turcos na região do cacau, ele busca o impossível: descansar na Bahia.
Infartado há um ano, o escritor enfrenta, com transgressões, a recomendação de máximo repouso. É certo que toma suas pílulas, tenta atender ao horário da fisioterapia e à mulher, Zélia. Mas cede ao convite dos amigos, aos pedidos, às inagurações. A tudo que signifique algum bem para a Bahia
Diz que não tem mais de 40 minutos para conversar. É a hora da fisioterapia. A conversa, com a presença do amigo e escritor Antonio Risério, se estende por 90 minutos. A empregada traz uma pilula. A pílula espera, na palma da mão que a empolgação se vá. Jorge Amado fala daquilo que move sua obra: o cárater do povo brasileiro.
E ele diz estar percebendo uma mudança. Para pior. Se assusta com o "clima de delação" acentuado pelas CPIs. Lamenta o progressivo desaparecimento do "jeitinho" e a hipocrisia diante dos seios de Gal Costa e da calcinha, ausente, de Lilian Ramos. Diz que sempre transgrediu a lei.
O símbolo do orixá Oxóssi guarda a entrada da casa , no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Jorge Amado fala dos seus dias de militância comunista, dos seus personagens marcados pela "desgraça da nossa época", a ideologia.
"Nunca trepei com camisinha", diz . Lamenta as restrições do tempo da Aids "ao amor que era livre e acabou" e acha terrível uma geração ser "condenada a um só modo de agir".
– À esquerda ou à direita, o sr. sempre teve suas posições contestadas. Como o sr. vê isto passados 82 anos de vida?
– Pensar por sua própia cabeça é uma caminhada longa e dolorosa. Imagine que em 1932, há 62 anos, eu era membro da juventude comunista. Por muitos anos eu acompanhei e obedeci passo a passo as decisões do partido, mesmo quando delas discordava internamente. O livro "Tenda dos Milagres" é um ponto de refêrencia neste processo meu.
– Por quê?
– Como estrutura eu não considero o meu melhor romance, mas é o que eu mais estimo, porque é um retrato da formação da cultura original brasileira . O personagem central é uma mistura de várias figuras que conheci. Pedro Arcanjo é um homem do povo, um homem que se transforma num sábio, sempre ao lado do povo, um homem que não se corrompe. Ele termina sendo um materialista. E, quando o questionam, ele diz. " O meu materialismonão me limita". E, nisso, ele falava pela minha boca.
Mas o personagem sempre ensina o autor num romance. Eu tento fazer com que o filho de Pedro Arcanjo, Tadeu Canhoto, vá além do pai, dê um passo maior.
- Tadeu é inspirado em quem?
- Em Carlos Marighella, meu amigo desde a juventude. Tadeu inclusive, como aconteceu com Marighella, faz uma prova de física em verso. Eu queria fazer de Tadeu um dos fundadores do PC aqui. Só que ele não aceitou.
– Fugiu ao controle?
– Sendo mulato àquele tempo, ele queria ser branco. Foi se casar com a filha do fazendeiro branco. Ser branco e rico. Ele inclusive, deixa a tenda do pai, a "Tenda dos Milagres". Veja como o meu pensamento ainda era estreito, limitado. Eu ainda pensava que a posição ideológica era um avanço. Hoje, acho que a ideologia é a desgraça da nossa época.
– E como o sr. se vê hoje?
– Como um homem menos preconceituoso. Um homem mais liberto, muito mais livre do que quando eu era jovem e depois, comunista. Os comunistas são, em geral, muito preconceituosos.
– Há 40 anos o sr. não poderia, como hoje, tomar posições ao lado do seu amigo Antonio Carlos Magalhães?
– Não, de jeito nenhum. Ao menos publicamente. E veja como são as coisas. Eu lhe conto um milagre e você não me pergunta quem é o santo?
– Certo, pode contar.
– Um importante intelectual da Bahia, do Brasil, baiano, muito baiano, nós nos encontramos em 90 em Paris, na casa de Julieta Arraes, irmã de Miguel Arraes: ele me chamou num canto e me disse: "Estou torcendo para o Antonio Carlos ganhar, porque ele é o melhor, mas eu não posso dizer nada a ninguém". Então veja como não é facil romper, como não foi fácil para mim romper. Eu sinto isto na atmosfera do Brasil. Há um temor de se tomar qualquer posição contra o Lula, contra o PT. Não é fácil você ser honrado com você mesmo.
– E o poder?
– Eu não amo o poder. Acho que o poder corrompe, degrada, é a coisa mais terrível do mundo. Eu vi homens maravilhosos serem degradados, se decomporem.
– E a crítica ?
– Há um problema na história intelectual brasileira. Houve um momento em que se constituiu a escola paulista de sociologia, que foi feita basicamente em cima de uma crítica ao Gilberto Freyre. E há uma diferença. O Gilberto tem um ponto de vista antropológico, ele vê o sistema de cultura popular internamente.
– Ao contrário da sociologia paulista?
– Ela não estava interessada, vamos dizer assim, no uso ritual dos defumadores mas, sim, em quantos defumadores tinham sido produzidos, quantas pessoas estão encaixadas na produção daquilo. Uma visão exterior do assunto.
– E qual é a consequência desta visão?
– Isto criou um choque, uma sociologia marxista, que via a cultura popular de fora e como algo quantitativista. O Gilberto foi esculhambado demais. Hoje eu dou conta do que significou "Casa Grande e Senzala" para a cultura brasileira.
– Como anda a crítica?
– Não apenas a crítica, mas uma grande parte da nossa elite intelectual está muito distante do povo.
– Qual é a sua opinião sobre os irmãos Augusto e Haroldo de Campos?
– É um avanço a forma como se vê hoje os irmãos Campos. Eles já foram marginalizados. Hoje já se compreende, já se dá um peso e um valor ao que eles fazem, dizem e pensam.
– É certo que o país avança em muitos setores mas, pelo que se lê, vê, ouve, não estariamos sendo vitimados por um emburrecimento, uma mediocrização.
– Acho que há uma coisa ainda mais perigosa do que esta, uma coisa que eu espero que não ganhe, que perca. Está havendo uma modificação do nosso caráter de brasileiro. Uma das boas coisas do Brasil é que nós sempre tivemos uma atitude muito ampla em relação aos tabus do sexo, em geral aqui sempre se levou isto...
– Daquele jeito?
– Ali, né? De repente começa a se fazer como os hipócritas norte-americanos, nos escondidos. Esse negócio todo da moçada aí no Carnaval.
– A crise se deu porque a Lilian Ramos subiu um andar, até os camarotes. Ali no Sambódromo, na pista, quem não estava nu, estava seminu como, aliás, é da tradição.
– É claro. Nu na pista pode, com ou sem presidente. Subiu um andar não pode mais? É como aquele negócio da Gal Costa, como se o mundo viesse abaixo. Ela assume uma atitude política bonita, corajosa e vem aquela coisa suja de dizer que os peitos estão feios, caídos. Isso é uma baixaria. É como outra coisa terrível que vi nesta CPI.
– O que foi?
– É positivo a criação de uma consciência do povo contra a corrupção, mas as condições para que a corrupção continue estão todas aí. O horror, além disto, da gânancia que passou uma categoria de virtude é o ... como seria a palavra?
– Dedo-durismo?
– É. Mas tem uma palavra ainda mais forte, mais adequada para esta coisa da secretária, do chofer, da mulher do cara.
– É a delação?
– É, é a delação. A delação passou a ser uma nova instrumentação, um delator passou a ser herói.
– Como nos filmes americanos?
– Exato. E o brasileiro, o sujeito cordial – mesmo com as condições sociais, a miséria que traz a violência e tudo mais – vai cedendo à delação. Eu sempre fui simpatizamte do "da-se um jeitinho". Acho que é a maneira cordial de resolver os problemas. O Brasil não é um país solene, formal. Mas, de repente, o povo está se modificando.
– E não lhe parece que isto leve a nada melhor?
– Absolutamente não. Só leva a pior. Em vez de levar a um Estado honesto, leva a um Estado policial.
– "O jeitinho" sempre foi criticado. A mudança, o "não-jeitinho", não estaria levando a nada melhor. É isto?
– A nada, nada, nada. A pequena transgressão da lei é sempre necessária. A lei às vezes é ruim. Eu sempre desobedeci a lei.
– Exemplos, por favor.
– Quando meu filho João nasceu, eu e Zélia não éramos casados. Ela separada e eu desquitado. Não havia divórcio. Não podiamos nos casar. O filho desse casamento era adulterino. Eu fui ao cartório, registrei João como filho legitímo e estava cometendo um crime. Pouco me importava. O que importava era o menino. Outra coisa que sempre me orgulhou era o fato de não haver país no mundo onde os estrangeiros se sentissem menos estrangeiros do que o Brasil. E também isto começa a ser contestado.
– O que há ? É influência da televisão?
– É, acho que a TV é a base fundamental, junto com a sociedade, que é cada vez mais injusta, embora o Brasil, ao mesmo tempo, consiga fazer coisas maravilhosas.
– O sr. se refere a sobrevivência em meio a 40% de inflação ao mês, desgoverno, violência, falta de projeto e rumo?
– Não é apenas a sobrevivência, é também a capacidade que o brasileiro tem de, nestas condições, fazer a festa. Na Índia, o povo também é pobre, mas há outros elementos de violência, como a religião, que te afunda... Aqui, não. Apesar de tudo, a alegria predomina. Num momento em que o povo vê pela frente a oportunidade de fazer festa, faz.
– O sr. já falou, se fala muito da exuberância erótica brasileira. Com a camisinha, o que o sr. diria hoje se se dirigisse aos mais jovens?
– Não sei. Sou um homem de sorte, eu nunca consegui trepar com camisinha. Todas as vezes que tentei fazê-lo...
– Foi um desastre?
– Foi um desastre. Eu não sei como eu viveria hoje.
– E um personagem seu? Como fará "Bóris, o Vermelho", personagem daquele livro que o sr. está escrevendo há anos?
– Bóris é de antigamente, vai escapar da camisinha. Ela limita . Em Paris, seis anos atrás, uma coisa me impressionou.
– O que foi?
– Eu e meu irmão, James, encontramos uns brasileiros em excursão. Eles foram lá para casa e uma menina também. De uns 18, 20 anos. Ela andava com a paranóia da Aids.
– E dizia o que?
– Dizia que a única coisa de graça que a gente tinha era o amor. Que era livre e que agora acabou. Foi uma coisa que me marcou, você não pode imaginar. É terrivél: de repente, você vê uma geração condenada a um só modo de agir.

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