São Paulo, quarta-feira, 27 de abril de 1994
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O Mercosul de que não se fala

JAIR MENEGUELLI

O Tratado de Assunção completa no final deste ano o período de transição que deveria estabelecer as condições para a construção do Mercado Comum do Sul (Mercosul) envolvendo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Entretanto, entraremos em 1995 sem nenhuma garantia sobre o futuro desse processo.
Apesar de nossa oposição à forma antidemocrática como os governos desses países decidiram a criação de um Mercado Comum, sem a mínima consulta às sociedades envolvidas, temos apresentado propostas aos governos dos quatro países, pois consideramos que o movimento sindical não pode se omitir do processo.
Com essa ótica temos participado das reuniões oficiais do Mercosul, onde atuamos de forma articulada com as centrais sindicais e com os principais sindicatos dos demais países.
Temos demonstrado que a estratégia governamental, de priorizar os aspectos comerciais, está em contradição com os objetivos mencionados no preâmbulo do Tratado e que os interesses dos trabalhadores têm sido desconsiderados e poderão ser mais afetados do que já são hoje. Estes são os aspectos que quero abordar neste artigo.
A primeira pergunta que somos obrigados a fazer é: de que Mercosul estamos falando?
O artigo um do Tratado de Assunção diz claramente: "Os Estados-Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá ser estabelecido em 31 de dezembro de 1994 e que se denominará Mercado Comum do Sul (Mercosul)", prevendo que o mesmo implicará "a livre circulação dos bens, serviços e fatores produtivos (mão-de-obra e capital)" através da eliminação das tarifas intrazonas; o estabelecimento de uma "tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados; a "coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados-Partes" (para) "assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados-Partes". Tudo isso num prazo de quatro anos.
Muita gente tem argumentado a irrealidade do prazo para tamanha façanha. Isso é certo, tanto assim que não se alcançará o estabelecido na data prevista. Mas o prazo é consequência da estratégia adotada –um processo multi-setorial e inflexível de desgravação automática das tarifas intrazonas, transformando os aspectos comerciais em prioridades da integração.
A liberalização comercial, em vez de promover a "coordenação de políticas", promoveu uma verdadeira guerra competitiva e os governos vêm adotando novas barreiras comerciais não-tarifárias em nível de Mercosul, ao mesmo tempo que estabelecem de forma direta e independente sua inserção no mercado internacional, através de acordos bilaterais e/ou maior redução de suas alíquotas frente a terceiros mercados.
Esta situação levou a um emperramento nas negociações da Tarifa Externa Comum para algumas áreas sensíveis de nossa pauta comercial e ao adiamento da finalização desse processo, ou seja, da constituição de uma União Alfandegária para depois do ano 2000.
O estabelecimento de uma união alfandegária é fundamental para a constituição de um futuro Mercado Comum, onde devem existir regras comuns em relação a terceiros mercados –uma mesma tarifa externa e um mesmo critério de origem– para garantir que apenas os produtos considerados nacionais circulem entre os países integrados com tarifa "zero" de importação.
A manutenção da instalação de uma Zona de Livre Comércio em 1995, com essas indefinições em relação ao tratamento do Mercosul frente a terceiros mercados, poderá levar à paralisação do processo no estágio atual, onde provavelmente os países menores se transformarão em verdadeiros "corredores comerciais" e crescerá a instalação de "maquiladoras" na região (frente a não exigência de critérios de origem), trazendo consequências danosas principalmente para o Brasil.
Direitos sociais também postergados
Os problemas sociais têm crescido em consequência da forte reestruturação que as empresas impulsionam para fazer frente à "guerra comercial" e à liberalização econômica da forma que se estava produzindo.
Além disso, há uma forte pressão pela adoção de medidas para a desregulamentação dos direitos trabalhistas, sob a alegação de que a redução dos custos laborais permitiria o crescimento da competitividade dos produtos nacionais.
Essa é a diretriz que tem prevalecido no subgrupo de Relações Trabalhistas, Emprego e Seguridade Social, onde os problemas reais que já estão ocorrendo vêm sendo desconsiderados em função da priorização de temas que influam nas negociações comerciais –a redução do custo da mão-de-obra e os aspectos diretamente relacionados à circulaçào de mão-de-obra.
No entanto, hoje já vivemos situações que confrontam as diferenças trabalhistas. Por exemplo, a contratação de brasileiros para trabalharem temporariamente no Uruguai e na Argentina, principalmente nas áreas da construção civil e telecomunicações, com salários muito inferiores aos que são pagos nesses países.
As empresas brasileiras obtêm os contratos naqueles países por oferecerem menores gastos com a mão-de-obra. Isso é o que nós chamamos de "dumping social", que penaliza os trabalhadores brasileiros colocando-os numa situação de indignidade e tira emprego dos uruguaios e argentinos em seus países.
Nós denunciamos ao governo esta situação e até agora nada de concreto foi feito. Ao contrário, o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, em carta-resposta que enviou à CUT, colocou-se contrário à nossa reivindicação de inclusão dos direitos trabalhistas no mandato da Organização Mundial para o Comércio, que será criada em Marrakech (Marrocos).
Alegou que essa é uma manobra dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que querem "anular vantagens comparativas dos países em desenvolvimento, decorrentes de níveis salariais necessariamente mais baixos do que aqueles prevalecentes nos países desenvolvidos" (e) "dos diferenciais trabalhistas para aplicar medidas protecionistas".
O ministro reconhece a situação desvantajosa dos trabalhadores brasileiros e defende que a competitividade de nossos produtos se sustente na maior exploração do trabalho.
As centrais sindicais apresentaram uma proposta de Carta de Direitos Sociais, defendendo a garantia de direitos sociais individuais e coletivos básicos e igualdade de trato a todos os cidadãos em todos os países do Mercosul.
Defendemos também a adoção de mecanismos supranacionais que garantam a aplicabilidade e o cumprimento desses direitos.
O Itamaraty tem se manifestado contra, alegando que isso implicaria perda de autonomia nacional. Entendemos que sem a existência de organismos com autoridade de fiscalização a Carta não teria nenhuma eficácia.
Como será o novo período de transição?
Este ano os governos deverão estabelecer as bases de um novo período de transição. Será novamente uma decisão apenas governamental, ou a sociedade será ouvida desta vez? Entendemos que é preciso rever o Tratado e mudar a estratégia que vem sendo adotada.
O Mercosul será efetivamente um instrumento de desenvolvimento com justiça social se promover o estabelecimento de políticas de complementação econômica, apoiando a reestruturação de alguns setores e a especialização de outros, para garantir um maior equilíbrio regional.
Deve ser um instrumento que proporcione o acesso de todos a bens e serviços e a oportunidades de emprego e contribua para o desenvolvimento de uma consciência comunitária e democrática.

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