São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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40 anos antes e depois

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Mexia em velhas pastas que escaparam das periódicas limpezas que a gente promove de tempo em tempo. Pelo amarelado das folhas, já ia rasgando tudo e jogando no lixo quando uma delas caiu ao chão: apanhei-a, não resisti e li.
Na velhíssima lauda do "Correio da Manhã", na remotíssima data de 22 de janeiro de 1960, algum repórter descrevia com os adjetivos e os cacoetes da época a inauguração de um gerador que fora levado para Brasília, a fim de ajudar na iluminação da cidade que seria inaugurada três meses depois.
A matéria tinha vindo da sucursal, passara pelo copydesk, viera para minha mesa em forma de chamada de dez linhas, eu editava a primeira página, por qualquer motivo não a paginei, e ali estava ela, 34 anos depois, caída no chão do meu gabinete.
Por curiosidade, fui ver outras matérias daquela pasta. Eram mais ou menos da mesma época e tinham, esquematicamente, o mesmo teor: falavam de obras, geradores, iluminações, estradas, produção de carros. Nas chamadas do segundo caderno, as dicas eram filmes de Fellini, Antonioni, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Bergman. Na certa, eu as havia trocado por outras que me pareceram melhores na ocasião.
Fico imaginando, daqui a quase 40 anos, se um desavisado editor de primeira página encontrar entre os guardados uma pasta ou disquete semelhante. E dela cair os excessos de um dia, de uma semana ou mês de notíciário. Os nomes serão outros, é óbvio: Amorim, Biscaia, Castor, Capitão Guimarães.
As notícias serão: bicho, corrupção, ladrões do Orçamento, estupros, drogas. Apesar dos quase 40 anos transcorridos, eu ainda sei quem são Fellini, Bergman, Antonioni. Bem ou mal, sei que Brasília continua iluminada pelos geradores. JK gostava de dizer que a cidade era "corruscante". Duvido que o editor de hoje, no ano de 2.034, mexendo em velhos papéis ou disquetes, venha a saber quem foram capitão Guimarães, Biscaia, Amorim e Castor.
É possível que Brasília não mais se apresente feérica em suas luzes, "pompeando na escuridão como um gigantesco pássaro iluminado", outra expressão, meio empolada, do próprio JK. Daqui a 40 anos talvez perguntem: Afinal, quem foi mesmo JK?

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