São Paulo, sexta-feira, 29 de abril de 1994
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Ficção vence realidade em 'Pequeno Buda'

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: O Pequeno Buda
Produção: EUA, França, 1993
Direção: Bernardo Bertolucci
Elenco: Keanu Reeves, Bridget Fonda, Chris Isaak, Alex Wiesendanger, Ying Ruocheng.
Salas: Ritz, Bristol, Gazeta, Iguatemi e circuito

"O Pequeno Buda" começa quando um grupo de monges do Butão, confins da Ásia, julga ter elementos suficientes para acreditar que Jesse Konrad (Alex Wiesendanger), um menino de Seattle, EUA, é a reencarnação de seu líder espiritual, Lama Dorie.
Ou seja, o filme já começa na plenitude da ficção: indícios que se juntam a crenças, crenças que investem sobre a realidade e terminam por moldá-la.
Numa das primeiras cenas, o venerável Lama Norbu (Ying Ruocheng) sai de seu mosteiro –local alheio ao tempo– e cai direto em Seattle. Esta cidade é, como se sabe, a capital mundial dos aviões a jato e, portanto, da modernidade, do tempo transformado em matéria.
Esse primeiro choque designa o que será "O Pequeno Buda": um encontro entre instâncias contraditórias. Existe ali o plenamente espiritual (mosteiro) e o completamente material (Seattle). Existe um pragmático engenheiro (o pai de Jesse) e monges para quem tudo gira em torno da idéia de reencarnação. Existem, por fim, duas tradições culturais distintas e estranhas uma à outra.
Por tudo isso, não é espantoso comparar este filme a certos trabalhos de Spielberg: não é tão diferente assim humanos entrarem em contato com um extraterrestre ou um menino de Seattle acabar no Butão, com velhos sábios prestando reverência a ele, apenas por estarem convictos de que ele reencarna seu líder. São, ambas, situações inverossímeis, que se materializam pela mediação do cinema (ficção tornada matéria).
Todo o interesse do filme de Bertolucci está aí, embora ele se divida em duas partes distintas. Se uma narra esse encontro impossível, a outra dedica-se a contar a vida do jovem príncipe Sidharta (Keanu Reeves).
A história de Sidharta é narrada como fábula infanto-juvenil. Mas os mesmos elementos que priorizam a imaginação sobre a realidade estão presentes. Exemplo: durante toda a sua formação, Sidharta é mantido pelo pai em um mundo fictício, onde não existe dor, doença ou morte. Um dia, ele sai dos limites do palácio e conhece "a realidade". As aspas entram aí porque "a realidade" não é mais nem menos real do que o mundo em que Sidharta vivia confinado. É apenas outra coisa, que determina no príncipe uma nova maneira de ver e pensar o mundo.
O que talvez tenha espantado, neste filme, é o fato de Bertolucci distanciar-se tão radicalmente das preocupações temporais (luta de classes etc.) em favor de um assunto apenas "espiritual".
Sim e não. É possível lembrar que o diretor italiano realizou, em 1970, "A Estratégia da Aranha", que era baseado em um conto do argentino Jorge Luís Borges ("Tema do Traidor e do Herói"), onde justamente é evocada essa conexão entre idéia e matéria.
Mais do que isso: para alguém que está longe de ser um fã incondicional de Bertolucci, o que seus filmes têm de mais belo são certos momentos mágicos. Os bailes (em "1900"), Marlon Brando chorando sob um pontilhão de Metrô ("O Último Tango em Paris"), o pequeno Pu Yi surgindo frente a sua enorme corte ("O Último Imperador"). Instantes fugazes em que os personagens assumem uma natureza segunda, contradizem a realidade de seus corpos, vêem-se investidos plenamente pela ficção.
Em "O Pequeno Buda", o que antes eram momentos isolados, torna-se sistemático: nas histórias de Sidharta e Jesse, a ficção organiza o mundo e as crenças (a linguagem, enfim) determinam o encadeamento de fatos. É um filme para se ver como se vê um Spielberg, mas um Spielberg europeu.

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