São Paulo, sábado, 30 de abril de 1994
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Antropofagia ainda é costume brasileiro

ANTONIO CALADO
COLUNISTA DA FOLHA

Acho que o Brasil está começando de novo a exagerar. O assunto específico que me leva a pensar que entramos de novo no exagero é o do reaparecimento da antropofagia entre nós.
Nos aflitos capítulos do seu livro em que ele só aguarda que os tupinambás paulistas o matem e comam, Hans Staden mostrou não só como a antropofagia era natural entre os índios como era até objeto de piadas dos próprios índios. Piadas bem engraçadas, aliás, desde que não fôssemos nós o alvo delas, e estivéssemos prestes a ferver no panelão de barro.
No livro que publicou em 1557 sobre seu cativeiro, Hans conta como os índios já tinham até escolhido, apalpando-o, os pedaços que iam mastigar da sua pessoa, e ele só não foi parar no estômago dos homens de Cunhambebe porque, vítima súbita de uma terrível mas providencial dor de dentes, quase parou de comer. Magro como ficou, deixou de despertar a gula dos anfitriões, que acabaram se acostumando com ele.
Mas vamos à piada dos índios, uma das primeiras registradas na nossa piadística história. Estava Hans, antes da dor de dentes, entre os índios, na "happy hour" em que tomavam seu cauim. Hans tinha as pernas atadas de tal maneira que só podia se movimentar saltitando entre aqueles que o olhavam como a um bezerro de feira. Foi então que um dos índios fez todos, à exceção de Hans, morrerem de rir quando observou: "Lá vem nossa comida aos pulos ao nosso encontro".
Mais ou menos à mesma época, no Rio de Janeiro, Jean de Léry fazia observações semelhantes acerca da despreocupada antropofagia dos índios.
Foi só no século passado, e a partir sobretudo da independência, que os costumes alimentares dos índios começaram a ser encarados por assim dizer com um grão de sal.
A antropofagia deles seria apenas ritual, com a finalidade principal de, devorando o inimigo, assimilarem dele a coragem e mais alguma outra qualidade útil. Até virtudes familiares podiam ser preservadas via oral. Daí o endocanibalismo, as pessoas devorando gente da própria família, costume que, entre nós, ocorre ainda de forma figurativa mas violenta na tribo dos Collor.
O importante a ter em mente, porém, é que o canibalismo começou a ser encarado de forma mais fina, com toques religiosos de uma espécie de eucaristia um tanto desabusada, quando as famílias brasileiras, sustentadas pela escravidão negra, começaram a catar foros de nobreza autóctone entre os índios.
O movimento indigenista brasileiro, que criou um ímpeto todo especial nos romances de José de Alencar e nas poesias de Gonçalves Dias, foi parte desta nossa busca de uma aristocracia do meio do mato.
Para se distinguirem dos portugueses e se adornarem com a nobreza tupi-guarani muitos brasileiros bloquearam os lusos sobrenomes com que haviam nascido e passaram a se chamar Baraúna, Jatobá, Pitanga, Ipanema. Aliás, nos títulos de nobreza fartamente criados por Pedro 2º surgiram os condes e marqueses de Maricá, Paraná, Paranaguá, Paranapiacaba ou mesmo Índio do Brasil.
Nenhum patriota adotou o nome também não-luso de Malê, Cabinda, Mina ou Guiné, enquanto os patronímicos indígenas chegavam em bando, assim como os nomes próprios como Iracema, Jacira, Aimbirê, Moema e Moacir.
No entanto, já que o índio não se deixara escravizar (o que não é verdade, mas vá lá) e já que era agora utilizado como fonte de nobreza, era importante limpá-lo da nódoa da antropofagia.
Um sério ritual antropofágico era coisa aceitável, uma espécie de missa tupi, digamos. Coisa muito diferente e repugnante era aceitar o verismo das gravuras que ilustravam as memórias de Léry ou Staden, de índios alegremente a brandirem, como quem se brinda, tíbias e antebraços semi-devorados.
Era preciso separar o dado histórico, confiável, das lorotas e bravatas de franceses e alemães que só pensavam em converter relatos desenxabidos em best sellers. A verdade é que os visitantes estrangeiros já falavam mal de nós desde os tempos do descobrimento. Tal como continuam fazendo até hoje, sobretudo quando encontram um pretexto com nome indígena, tipo Acari ou Carandiru.
E foi completamente posto de lado o exagerado apetite dos índios pela carne de seus semelhantes nativos e, talvez mais ainda, pela carne importada, européia.
Hans Staden, em parte por ser cristão mas principalmente por ser, entre os índios, mero artigo de consumo, sempre que podia fazia suas pregações anti-antropofágicas.
O que aconteceu por exemplo quando um dos índios importantes, chamado por Hans de Quenrimacuí, queixou-se das horríveis dores de estômago de que sofria desde que havia comido imoderadamente um certo português que matara com suas próprias mãos. Esse índio ouviu o que tinha a dizer Hans contra a antropofagia. Não chegou a dizer que jamais voltaria a comer carne humana. Mas jurou que não tocaria mais em carne portuguesa.
A nova antropofagia
E o Brasil, como em tudo mais, está exagerando em matéria de antropofagia. Decorridos tantos séculos daqueles ferozes dias de Hans e bastante tempo desde os dias em que colhíamos nossos novos nomes como quem colhe frutas na floresta, vemos surgir em Olinda a nova antropofagia brasileira, o canibalismo daqueles que comem pedaços de gente apanhados no lixo de hospitais.
Parece que as imagens da refeição fúnebre não chegaram à televisão. Ou será que eu perdi algum "Aqui Agora" que terá mostrado ao Brasil dona Leonildes Cruz Soares comendo um seio que tinha sido emputado e que o hospital simplesmente jogara no seu monturo de gases, algodão e sobras de intervenções cirúrgicas? Não sei, mas haverá talvez vídeos à disposição dos interessados.
O governo de Pernambuco e a Prefeitura de Olinda trocaram acusações durante dias.
A secretária de Saúde de Olinda, por exemplo, declarou que a Vigilância Sanitária do Estado é que é a responsável pela incineração do lixo hospitalar e que no entanto a Prontolinda, por exemplo, principal clínica da cidade, continua digamos assim não cozinhando coisas que dona Leonildes, com sua enorme família de filhos e netos e renda mensal de CR$ 4.000, recolhe na hora, pois há concorrência na vizinhança.
A Prefeitura de Olinda alega que com a dívida que já tem, de US$ 20 milhões, não pode passar a queimar lixo. O governo de Pernambuco que o faça. Ou as ONGs, ou a Igreja.
Já que ninguém parece capaz de tomar qualquer iniciativa que seja, pelo menos não persigam dona Leonildes, que ficou com medo da publicidade.
Tenhamos a coragem de não impedir que o nome dela acabe registrado no Livro Guiness de Recordes, porque muito mais edificante e raro do que dançar durante uma semana ou atravessar a Mancha a nado no inverno é amar a vida ao ponto de buscar nutrição até na carne humana doente e morta.

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