São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Hora e vez da Constituinte exclusiva - 1

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Idealizar o que nos falta é uma propensão quase inerente à natureza humana. A mais doce canção de liberdade vem do cárcere. O exílio engrandece a pátria. Há um mandamento para não cobiçar a mulher do próximo. "Para aqueles que suam pelo pão diário", observou Keynes, "o ócio é um prêmio ardentemente desejado –até que eles o conquistam".
Também na política existe algo parecido. A experiência de uma longa temporada na oposição tende a suscitar vigorosas ilusões acerca das possibilidades de transformação da sociedade por meio do exercício do poder político.
À distância, os limites esvanecem e as miragens resplandecem. Tudo é uma questão de vontade. Todas as dificuldades parecem simples.
O alerta dado por Engels, em carta escrita no final da vida, vai direto ao coração das ilusões revolucionárias: "As pessoas que se vangloriam de terem feito uma revolução sempre acabam percebendo no dia seguinte que elas não tinham a menor idéia do que estavam fazendo e que a revolução feita em nada se parece com aquela que elas gostariam de ter feito". Retórica reacionária?
"É muito mais fácil tomar o poder numa época revolucionária", ele admitiu, "do que saber como usar este poder de maneira apropriada". A essa altura, a Revolução de Outubro estava no berço. Era apenas o começo.
Na história política brasileira, é possível identificar pelo menos duas experiências coletivas de frustração desse tipo –ambas associadas ao naufrágio de generosas ilusões acalentadas no ostracismo e nutridas ao abrigo de longa temporada oposicionista.
A primeira foi a República Velha. Visto dos estertores do 2º Reinado, o ideal republicano resplandecia. Abolido o trabalho escravo e instaurada a república, a nação finalmente encontraria o seu norte e caminharia a passos firmes e largos rumo à verdadeira democracia e à realização de seu grande potencial econômico. Os EUA que se cuidassem. Como era bela a república no crepúsculo do império!
Mas a república que nasceu das entranhas do império em nada se parecia com aquela sonhada pelos republicanos de primeira hora. Daquela semente de idealismo, prenhe de intenções progressistas, brotou a República Velha do "café com leite" e do "para os amigos tudo, para os inimigos a lei".
O que acabou vingando, como se sabe, não foi a república dos conspiradores radicais, mas a das oligarquias agrárias e do "coronelismo, enxada e voto". O desapontamento com o novo sistema de poder foi geral.
O clima de desilusão resultante reflete-se, por exemplo, no veredicto amargo de Sergio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil": "A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido".
A segunda experiência típica de frustração oposicionista nos moldes descritos é a Nova República, de Sarney a Itamar. Sob este aspecto, o período que estamos vivendo atualmente no Brasil é bastante semelhante à ressaca republicana do início do século.
Vista dos estertores do regime militar, a democratização resplandecia. Conquistada a democracia, a nação reencontraria o seu norte e seria possível imprimir ao desenvolvimento brasileiro um novo rumo, diferente do capitalismo selvagem e excludente do "milagre".
Qualquer que fosse o problema, a resposta era democracia –ou então mais democracia. Como era belo o futuro democrático no crepúsculo da ditadura!
Mas a democracia que nasceu das entranhas do regime militar acabou se revelando uma caricatura grotesca daquela sonhada na longa noite dos generais. O capitalismo selvagem ficou ainda mais selvagem e menos parecido com o capitalismo.
Estamos há uma década sob o signo dos planos de estabilização fracassados, da estagnação e da deterioração do quadro social do país. O desencanto com os "podres poderes" é geral.
Parte do problema, é verdade, foram os inúmeros acidentes de percurso que atrapalharam a nossa transição democrática.
Fatos como a morte de Tancredo, o quinto ano para Sarney, a eleição e o impeachment de Collor, o estouro do escândalo do Orçamento na semana em que deveria começar a revisão constitucional e a inépcia de Itamar são incidentes que, cada um a seu modo, contribuíram para complicar as coisas desde o término do regime militar.
É difícil imaginar que, em qualquer outro período de sua história, o Brasil tenha tido tanto azar quanto na última década.
O azar, contudo, é um componente menor da trama. Ele ajudou a complicar o quadro, mas não o explica.
O que realmente acabou atrapalhando seriamente as coisas e tornando nossas dificuldades ainda mais sérias e intratáveis do que normalmente seriam foram algumas características específicas da transição política brasileira.
Particularmente, o processo constitucional que culminou na Constituição de 1988 padeceu de graves distorções.
A pior delas –uma verdadeira punhalada nas costas de nossa nascente democracia– foi a opção dos líderes da transição democrática de fazer um Congresso Constituinte, quer dizer, uma Constituinte com parlamentares eleitos à sombra de uma eleição majoritária para governador, com mandato pleno para continuar legislando após a promulgação da Carta e de acordo com um critério espúrio –herdado do regime militar– de representação dos Estados na Câmara.
São estas distorções que, agravadas pelo fiasco patético do Congresso Revisor, conferem legitimidade à proposta de criação de uma Constituinte exclusiva para proceder a uma revisão em profundidade da atual Constituição.
A segunda parte deste artigo será publicada no próximo domingo.

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