São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Reflexão altera nossa paisagem interior

OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Inventores da palavra, os gregos não se teriam enganado: se é preciso pensar bem, é para viver melhor. Busca da "justa vida", do "bem viver", questões de aparência, hoje, incongruente.
No ensaio "Filosofia, por quê?", Adorno mostra de que maneira essa pergunta comporta uma afirmação clandestina: "a filosofia não serve para nada", ou então, como diz o senso comum, ela é "aquilo com a qual ou sem a qual se fica tal e qual".
Preconceito simétrico encontra-se quando se diz que o filósofo "habita uma torre de marfim" –à distância dos sofrimentos de seu tempo– sendo um mero contemplador da barbárie. Nos dois casos, a filosofia é proscrita. Indolente e ociosa num mundo utilitário, com ela dissipa-se, também, o pensamento autônomo.
Sócrates, o patrono de todos os filósofos e de seus amantes, criou, como outros pensadores, uma modalidade de interrogação própria à "atitude" filosófica: uma disposição essencial à incoerência, à hesitação, ao exercício da liberdade.
O que requer uma experiência do tempo diversa daquela do dia industrial-produtivista, cronômetro e colonizador de nosso universo interno. Proust, em "À Sombra das Raparigas em Flor", narra como, progressivamente, foi-se constituindo, para ele, a "Sonata de Venteuil", cujos compassos acompanham toda a "Recherche": "esse tempo de que necessita um indivíduo para ingressar em ma obra profunda, é como o resumo e símbolo dos anos e, por vezes séculos que devem transcorrer até que o público possa apreciá-la verdadeiramente(...). Foram seus próprios quartos(...) que levaram 50 anos para dar vida e número ao público de suas composições, realizando o que seria impossível encontrar quando a obra-prima apareceu, isto é, criaturas capazes de amá-la".
Em filosofia e demais disciplinas humanistas, o trabalho é paciente –o que propicia o desenvolvimento da sensibilidade e do pensar, experiências que, sabemos, demanda toda uma educação.
Quando Kant afirmava: "não se pode ensinar filosofia, somente a filosofar" aludia à postura diante das coisas –atitude que procura compreender, abstendo-se de sentenciar. Atitudes e posturas se adquirem nos anos de nossa formação. Com isso, a filosofia questiona hábitos e preceitos, abalando a certeza de condutas, problematizando a inércia da Razão.
Aos jovens gregos destinava-se não a "didaskalia" –ensinamento de uma profissão– mas a "paidéia", a formação ("Bildung"). A "amathia"-presunção do cego que pensa ver, curava-se pelo estudo e reflexão. O que significa antes de tudo um convite ao jovem. Convite diverso da simples transmissão de conteúdos de doutrinas.
Trata-se, não de prepará-lo para "ver melhor" as coisas, mas a considerá-las de maneira diversa, orientando-se diferentemente no pensamento. Altera-se, portanto, nossa paisagem interior, pois a filosofia propõe "olhar em outra direção".
Se a filosofia é, como dizia Hegel, pássaro crepuscular que alça vôo ao anoitecer –quando o longo trabalho do dia já se realizou –se o saber começa tarde é também por começar cedo: recepcionar as obras do passado é tarefa árdua, pois necessita torná-las inteligíveis à luz do presente.
Como todos os bens culturais, a filosofia é um patrimônio que nos chega sem testamento. Se as reflexões de Platão nasceram num espaço e tempo determinados, também só se tornam inteligíveis em datas e lugares precisos, atravessando a filosofia, a barreira do tempo.
Disciplina de formação e não "performática", a filosofia possui seus aliados nas demais disciplinas humanistas: solitária, a reparação que a traz de volta ao 2º grau seria uma nova forma de esquecimento. Após décadas de desapreço, a filosofia retorna. Que os jovens possam reconhecer o direito a essa memória e a essa tradição. Desde sempre, bem-vinda.

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