São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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'Subúrbio' desperdiça ousadias formais

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Em "Bela do Senhor", um dos livros mais instigantes da segunda metade deste século, Albert Cohen (1895-1981) retrata a ascensão e a queda de uma paixão. O casal protagonista surge do mundo da diplomacia, vive numa assepsia exótica e faustosa, come do bom e do melhor, dorme nos hotéis mais refinados da Europa, um é mais bonito que o outro –mas nada disso evita o seu trágico desenlace.
"Subúrbio", de Fernando Bonassi, apesar de aquém em grandiosidade literária, pode funcionar como uma espécie de negativo da obra daquele autor grego/francês.
Aqui o glamour dá lugar ao trivial pobre; o vigor e a harmonia da juventude se transfiguram em rugas e rusgas; a falta de perspectivas substitui as grandes aspirações; charutos adocicados viram cigarros tortos e malcheirosos; a suburbana Vila Alpina ocupa o espaço da garbosa Place Vendôme...
Cá e lá, porém, uma mesma lei incontornável parece enterrar de vez qualquer possibilidade de saída feliz para quem quer que seja.
Bonassi narra a decomposição de um casal de idosos na periferia de São Paulo, casal sem nomes –"o velho" e "a velha", simplesmente– mas que certamente bebeu um dia da mesma água da paixão que Solal e Ariane, o par luxuoso de Cohen.
Sua casa vive um cotidiano medíocre, abriga baratas e teias de aranha, tem gordura espalhada por todo lado, poeira e bibelôs baratos; "o velho", operário aposentado e alcoólatra, é objeto de gozação dos outros; "a velha" mais parece uma alma penada vagando entre o corredor e a cozinha; ranzinzas, os dois deixam de se falar, agridem-se velada ou abertamente, enquanto os anos passam e os dejetos urbanos se avolumam em torno deles. Só o surgimento repentino de uma menina da vizinhança parece acender uma luz no fim do túnel.
Os 88 pequenos capítulos de "Subúrbio", com seus personagens de classe média baixa cujas relações se deterioram na mesma velocidade que seus parcos pertences, fazem lembrar o universo dos Joões e Marias, dos dentinhos de ouro e vestidos vermelhos de Dalton Trevisan, embora sem a concisão sofisticada e obsessiva do escritor curitibano.
Neste seu segundo romance, Bonassi demonstra ter qualidades louváveis, especialmente em literatura: a ousadia, o gosto pelo risco. Seu estilo é multifacetado, incorporando descrições simples, monólogos interiores, cartas, alguns neologismos e narrações sincopadas. Há uma espécie de colagem em seu trabalho.
Mas toda ousadia pressupõe um equilíbrio, uma dosagem particular –e pode ter um preço inesperado. Em certos momentos de "Subúrbio", o desprendimento do autor se corporifica num experimentalismo um tanto irritante na sua gratuidade; pueril nos recursos primários e fáceis que utiliza; e estéril pela volatilidade em que as palavras logo se dissolvem na memória do leitor, apagadas por uma "forma" imposta arbitrariamente.
Há um capítulo só com interrogações, um outro com frases miúdas, um terceiro feito de diálogos e assim por diante. São ferramentas de estilo não intrinsecamente problemáticas, mas desde que não estejam deslocadas e possam fluir numa obra com naturalidade –o mesmo "Bela do Senhor" utiliza-se sabiamente dessas misturas.
Caso contrário, como aqui, saltam aos olhos como meros exercícios de escrita, tornam-se rançosas, inúteis, artificiais; é como se o autor quisesse dizer para seu leitor: "olha, aqui eu estou inovando...". E no entanto, "Subúrbio" não necessita delas desse jeito. Ele se sustentaria melhor sem elas até, mais enxuto –como são os seus próprios personagens–, e o leitor não precisaria transpor barreiras para seguir adiante na leitura.
Superados esses obstáculos, porém, ressuda da narrativa de Bonassi um retrato frio e meticuloso, bem paulistano, da vida sem glória de milhões e milhões de seres que se movem num território existencial marcado por uma irreversível sequidão. Em especial nos últimos capítulos da primeira parte e no final do livro, a história engancha melhor o texto, e dói no leitor o destino miserável dos personagens.
À base dessa ótica pessimista e cruel, o autor consegue tornar aplicável a um subúrbio metropolitano o célebre verso composto por Carlos Drummond de Andrade para uma cidadezinha qualquer: "eta vida besta, meu Deus!"

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