São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Como escrever sobre a 2ª Guerra sem clichês

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Uma das características nunca suficientemente enfatizadas da Segunda Guerra é quão mundial ela foi de fato.
É por isso que quatro personagens de origens tão diferentes quanto o paciente inglês, a enfermeira canadense, o ladrão italiano e o perito em explosivos indiano podem se encontrar numa vila, ao norte de Florença, em 1945, no romance de um poeta cingalês educado na Inglaterra e radicado no Canadá.
A trama de "O Paciente Inglês" de Michael Ondaatje, ganhador do prestigioso Bookers Prize, é mínima, ocupa poucos meses, envolve a obsessão de uma enfermeira por seu último doente, um reencontro e uma breve história de amor. O resto são conversas e memórias.
Hana, com apenas 20 anos, já havia cuidado de um sem-número de soldados moribundos, mas por alguma razão, quase no final da guerra na Europa, ela se apega a um paciente cuja identidade ninguém consegue descobrir, queimado e desfigurado num acidente aéreo ocorrido no deserto africano.
Quando a Vila San Girolamo, que servia de hospital, é abandonada, ela se recusa a deixá-la e fica lá sozinha com o homem sem nome, fraco demais para ser transportado. David Caravaggio, ladrão que pusera suas habilidades a serviço dos aliados e, na qualidade de espião, fora preso e mutilado, está se recuperando num hospital –onde se viciara em morfina– quando fica sabendo do paradeiro da moça, filha de um amigo seu, morto em combate na França.
E vai ao seu encontro, preocupado com sua segurança, pois a região havia sido minada de explosivos pelos alemães que se retiravam. Pouco depois, Kip, um jovem sikh oriundo do Punjab, oficial do exército britânico e perito em desarmar minas chega ao local para realizar seu trabalho e acaba se juntando aos outros três.
O paciente e o ladrão, em maior ou menor grau, são pessoas fisicamente destruídas pela guerra. Hana, por sua vez, só permanece incólume em termos físicos.
Kip, no entanto, parece saudável de corpo e alma, e sai alegre toda manhã para desarmar mais uma mina que pode, obviamente, explodir nas suas mãos. Para ele, a guerra vinha sendo a grande oportunidade de descobrir a civilização européia, materializada na arte italiana, sobretudo nos afrescos das igrejas pelas quais passou com os aliados que subiam a Itália rumo ao norte.
Essa civilização reservava-lhe, porém, outras surpresas. Ainda assim, conforme os personagens aparecem, não é só para o leitor que eles são estranhos: eles ou não conhecem a si mesmos ou, afogados nos acontecimentos, esqueceram quem eram. No convívio comum, a redescoberta se opera através da memória. No entrechoque de várias memórias, os fatos começam a se tornar inteligíveis e emergem as identidades.
Essas personagens etéreas, apresentadas de uma maneira quase abstrata, vão adquirindo concretude e os fios tênues das lembranças transformam-se primeiro num esboço e, aos poucos, em desenhos complexos.
Há engenho, sem dúvida, no modo como o emaranhamento dos distintos fios individuais resulta não em confusão, mas numa claridade cada vez maior. E há elegância na descrição de vários tipos de minúcias que vão da distinção detalhada das várias espécies de ventos do deserto ao trabalho penoso de inutilizar uma mina.
"O Paciente Inglês" não se encaixa num gênero fixo. Na realidade, percorre vários com virtuosismo, revelando-se sucessivamente romance psicológico, de guerra, de aventuras e de espionagem.
Talvez o que seu autor tenha de mais original seja mesmo uma maneira particularmente oblíqua de narrar, de dispor o material. Quando se inicia uma nova seção é difícil às vezes saber de quem o narrador fala, em qual das quatro cabeças se delineia determinado episódio ou uma sensação qualquer.
A exposição –vazada numa prosa cuja limpidez clássica faz passar quase despercebidas imagens pouquíssimo convencionais– não é linear ou discursiva. Pelo contrário, em cada capítulo, materiais aparentemente desconexos se acumulam até que, num momento imperceptível, tudo o que foi exposto toma uma forma definida e começa a fazer sentido.
Idêntico princípio articula o romance inteiro. Assiste-se assim menos à elucidação de um mistério do que à construção de um panorama tridimensional. A curiosidade do leitor tende a se dirigir não a uma resposta para cada indagação, mas à avaliação do papel ou lugar desta numa conversa que, espiralada em vários planos, espraia-se pelos teatros da guerra e mergulha num passado anterior e diferente.
Fascinado por um conflito cuja geografia é tão variada quanto a sua própria, Ondaatje criou através de seu microcosmo um romance que, na babélica literatura que a Segunda Guerra ensejou nos últimos 49 anos, se destaca tanto pelo ineditismo de seu enfoque quanto por ter conseguido escapar à maioria de seus infinitos clichês.

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