São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Os gregos antigos e o prazer homoerótico

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os gregos antigos e oprazer homoerótico
A Nova Alexandria lança o ensaio "Homossexualidade na Grécia Antiga"
A homossexualidade grega, de K.J. Dover, tem o porte dos grandes clássicos sobre a sexualidade. Evoca, pela erudição, rigor e elegância de argumentos, "Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality", de John Boswell, ou os estudos de Paul Veyne e Peter Brown.
Sua originalidade deve-se, sobretudo, à exploração de processos judiciários e pinturas de vasos decorativos, fontes de pesquisa até então inéditas.
Analisando processos de cidadãos acusados de praticarem a prostituição masculina e a iconografia erótica, Dover confirma e dá novo relevo ao que era conhecido pela análise de textos cômicos, filosóficos ou poéticos.
Na Antiguidade grega, a "pederastia", ou seja, a relação sexual entre o homem mais velho, o "erastes", e o rapaz jovem, o "erômenos"', era aprovada, incentivada e tomada como modelo de ética amorosa.
Porém o leitor engana-se se projetar no passado os hábitos mentais do presente. A relação "pederástica" não coincide com a moderna relação "homossexual".
Na Grécia não existiam palavras para designar o que chamamos de "homossexualidade" e "heterossexualidade" porque simplesmente não existia a idéia de "sexualidade". A sexualidade é uma construção cultural recente, como mostrou Foucault.
No mundo helênico havia um eros múltiplo, heterogêneo, sem contrapartida no imaginário de hoje. Assim, o eros da "pederastia" era, em sua "natureza", diverso do eros presente entre homens e mulheres ou mulheres e mulheres.
Por princípio era virtuoso, ao contrário da "homossexualidade" contemporânea, tida como vício, doença, "degeneração" ou perversão, desde que foi inventada pelas ideologias jurídico-médico-psiquiátricas do século 19.
Entretanto, inventada justamente porque era dirigida para a virtude, a "pederastia" era draconiamente regulada em seu exercício. O que estava em jogo era a educação do cidadão, portanto, toda conduta que evocasse passividade e excesso, era considerada indigna.
O "erômeno" não podia ser passivo na relação amorosa, isto é, não podia ser penetrado, pressionado física ou moralmente a ceder aos avanços sexuais do "erastes", subornado com dinheiro ou presentes etc.
Em consequência, o uso dos prazeres devia estar a serviço da honra do cidadão. A liberdade sexual privada, como a concebemos, era impensável na Grécia.
Mas, como disse certa vez Hannah Arendt, só um grande pensador é capaz de grandes contradições. Dover mostra de forma magistral a peculiaridade histórica da "pederastia"; por que, então, denominá-la de "homossexualidade"?
Porque, penso, como quase todos, em nossa cultura, acredita na existência de algo chamado "sexualidade", "heterossexualidade" e "homossexualidade", independente dos elementos implicados na definição dos termos.
Explico melhor. Sexualidade é um termo aplicado à uma série de realidades linguísticas e não-linguísticas como: descrições médico-biológicas do aparelho reprodutivo; descrições de sentimentos como amor, paixão, afeto etc; descrições de sensações corpóreas como orgasmo, excitação física, ejaculação etc; descrições de regras e instituições de parentesco, como família, casamento, maridos, esposas, filhos, namoro, paquera etc; descrições de julgamentos e atitudes morais diante do que é permitido, proibido, desejado, condenado, rebaixado, ridicularizado etc.
Imaginar que existe uma "sexualidade" além do conjunto de itens constituintes de seu domínio de uso linguístico faz tanto sentido quanto alguém perguntar "o que é ou onde está a universidade", depois de localizar e identificar alunos, professores, salas de aula, laboratórios, cantinas, bibliotecas, edifícios, horário de aulas, provas, exames de titulação, como no exemplo de Gilbert Ryle. Não existe um "substrato" da universidade assim como não existe uma "substância" da sexualidade, como um atributo universal, reconhecível em todos os elementos que fazem parte de sua definição.
Com a palavra "homossexualidade" ocorre a mesmíssima coisa. Dover acha que o que existe de comum entre a "pederastia" e a "homossexualidade" é a "disposição para buscar prazer sensorial por meio do contato corporal com pessoas do próprio sexo, de preferência ao contato com o outro sexo".
Mas o que é "buscar prazer sensorial com pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto"? Buscar prazer sensorial, sentir-se atraído por outro do mesmo sexo biológico, pode ser descrito da mesma forma como descrevemos a "atração" de um planeta por outro ou o tropismo de uma planta pelo sol?
Uma "homossexualidade" como a grega, que impedia contatos físicos entre homens adultos, coito anal e manifestações apaixonadas dos parceiros e que, além disso, fazia da "pederastia" a mais nobre forma de aparecimento de eros aos mortais é a mesma "homossexualidade" descrita como "perversão", "desvio" ou produto de "disposições genéticas", conforme a ideologia do momento?
Mais ainda. Uma "homossexualidade" recomendada como louvável e praticada por toda elite moral, intelectual, política, artística, guerreira, religiosa de uma sociedade culturalmente sofisticada como a grega, seria a mesma "homossexualidade" das minorias "gays"; dos encontros clandestinos em guetos: da culpa e da vergonha presentes na esmagadora maioria dos que sentem tal tipo de inclinação erótica?
Como e por que ver na "pederastia", pensada desta forma, uma ocorrência particular de uma "homossexualidade" universal? Basta falar de "disposição ao prazer sensorial com pessoas do mesmo sexo", para homogeneizar a "pederastia" e a e a "homossexualidade"?
Duvido. Uma frase como esta não resistiria minimamente ao teste do valor erótico diferencial dos objetos, em Freud; da inescrutabilidade do referente, em Quine; da autonomia do sentido, em relação ao suporte referencial, em Wittgenstein ou ao problema do referente sem realidade, em Davidson.
A crença de Dover numa "homossexualidade" trans-histórica, igual a ela mesma no tempo e no espaço, é produto de nossa "disposição imaginária" para crer numa essência da "homossexualidade" que, no entanto, só existe e tem sentido quando holisticamente articulada ao vocabulário moral da sexualidade burguesa oitocentista.
Foi a partir do momento em a família nuclear organizou-se em torno das figuras do homem-pai; da mulher-mãe; da criança-pai psicológico do adulto etc, que todos os indivíduos do mundo passaram a dividir-se em "heterossexuais" e "homossexuais" e esta divisão passou a tornar-se "natural" e "evidente por si mesma".
Desde então, médicos, psiquiatras, higienistas, pedagogos, juristas, moralistas, psicanalistas e a "vox populi" começaram a caça à "homossexualidade" escondida ou manifesta dos "homossexuais", descobrindo-a em "estruturas"; "disposições"; "traumas" ou em qualquer outra invenção estapafúrdia, plausível aos olhos do preconceito.
O uso do termo "homossexualidade", num estudo do quilate de "A Homossexualidade Grega", surpreende e mostra, ao mesmo tempo, a força performativa das palavras na construção linguística de nossas crenças, desejos e subjetividades. Mas, como mostrou Freud, dizemos sempre mais do que queremos dizer.
Para quem ainda não está totalmente convertido à cultura do sexo-rei, com suas homossexualidades, heterossexualidades e bissexualidades, a leitura deste livro fascinante é obrigatória. Em suma, uma obra-prima com uma etiqueta infeliz.

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