São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Elipses de Kristeva abraçam o 'outro'

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Elipses de Kristeva abraçam o `outro'
A escritora faz uma arqueologia cultural do "estrangeiro" no Ocidente
Julia Kristeva, 53, possui um currículo bastante denso para se tornar "maître à penser".
Pena que o mercado intelectual francês esteja avesso a esse modelo de personagem que produziu tantos encantos na cultura de massas até o fim dos anos 70.
Mesmo assim, ela persiste. Escreveu "Estrangeiros Para Nós Mesmos", publicado em 1988 e que a Rocco lança em tradução.
Erudição refinada, elíptico em seus argumentos, o livro exibe como objeto de reflexão algo hoje alheio ao cotidiano dos brasileiros: a divisão do espaço social com uma multidão de imigrantes.
Na França, são estrangeiras quase um décimo da população e 7,4% da mão-de-obra ativa. Praticamente todos "inassimiláveis" (negros de Mali, muçulmanos da África do Norte), que escapam ao processo do "melting pot" cultural que neste século absorveu, às pencas, espanhóis, poloneses ou italianos.
O estrangeiro, para o francês, é agora radicalmente "o outro", segundo, porém, uma relação de alteridade difícil, conflitosa.
O exemplo mais banal disso está na Frente Nacional, partido que fez da xenofobia sua plataforma política e obteve um décimo dos votos nas legislativas de 93.
No viveiro parisiense de idéias, não se esperaria de Kristeva um manifesto contra o racismo ou uma postura de afeto militante para com os não-nacionais.
Os partidos e as ONGs (Organizações Não-Governamentais), últimos herdeiros da racionalidade, já preenchem este espaço de linguagem.
Kristeva é, ela própria, uma estrangeira. Emigrou da Bulgária aos 25 anos, mesmo que este detalhe fundamental não apareça, em nenhum momento, incorporado à sua identidade como autora.
O estrangeiro, no texto, está sempre na terceira pessoa.
Detalhe irrelevante para a semióloga, espécie de musa do estruturalismo em Maio de 68, ex-maoísta, fascinada há década e meia por essa miséria doutrinária que foram os novos filósofos, hoje psicanalista e professora de literatura.
Sua abordagem do estrangeiro toma por base uma espécie de arqueologia cultural.
Não por meio da história dos confrontos e desfechos entre culturas e impérios, do subjugar colonial que institucionalizou a mentira segundo a qual os dominados são de qualidade étnica inferior à dos dominantes.
Uma mentira que os imigrantes das ex-colônias exemplificariam "a fortiori", por seus costumes supostamente incivilizados.
Sartre e tantos outros já enveredaram com brilhantismo por esse caminho de denúncia.
O trajeto implicitamente seguido por Kristeva tem como ponto de partida o fato de o estrangeiro ser, para nós, um conteúdo que oscila entre o literal e o latente, num conjunto bastante amplo de modelos, textos e narrativas.
São os discursos sobre "o outro" que o Ocidente acumulou –das Danaides da tragédia grega, passando pela Bíblia dos judeus e de São Paulo e chegando a Rabelais, Montaigne ou Kant.
Assim –e por que não?–, uma releitura desse imenso corpus é virtualmente capaz de perfilar a problematização específica da alteridade mal resolvida.
Ou melhor, de impossível solução, já que "o outro" está, em última instância, embutido em nós mesmos (Freud), e também porque, entre nós e ele, inexistiria dialética ou tampouco a virtualidade de pausas relacionais para a formulação de modelos de síntese.
A noção de estrangeiro "possui um significado jurídico: aquele que não tem a cidadania do país que habita", constata a autora.
Mas, ao mesmo tempo, o estrangeiro ocupa ostensivamente "o lugar da diferença, e lança à identidade do grupo, tanto quanto à sua própria, desafios que poucos dentre nós estão aptos a aceitar".
As 205 páginas do livro correspondem, justamente, a uma aceitação desse desafio.
Ao plano etnográfico, sociológico, jurídico ou político, Julia Kristeva contrapõe o discurso da crítica literária, que por sua vez se ramifica de maneira a acariciar cada uma dessas pertinências academicas consagradas.
Alguns trechos são conceitual e textualmente brilhantes, como a dissertação sobre o papel da moabita Rute no judaísmo, a função de Santo Agostinho na suposta dissolução das fronteiras culturais e linguísticas no quadro da comunidade cristã, Dante exilado de Florença e assim por diante.
Resta um ponto incômodo e por certo fundamental: até que ponto a diluição pelos séculos da problemática da alteridade não levaria, justamente, à perda da própria noção de processo histórico que parametraria os atuais modelos politicamente tenebrosos de relacionamento com o estrangeiro?
Kristeva cai na armadilha, sem no entanto acusar a queda. É bem verdade que o discurso da psicanálise possui como atributo a cimentação das fendas abertas pela negação da historicidade.
Mas a conclusão subsequente seria a de que a alteridade problemática obedece a um modelo único e perene, o que por certo não é verdade. O racismo só criou condições de emergência com a aparição do Estado-nação.
A aporia não é resolvida, o que a rigor não é importante. É um prazer reencontrar Julia Kristeva, sua vivacidade pluridisciplinar e seu elíptico brilhantismo.

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