São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Filhotes também têm 'ataques'

LOUISE BARRETT; ROBIN DUNBAR
DA "NEW SCIENTIST"

Todo mundo já viu a cena: o pestinha faz um escândalo no supermercado, numa tentativa de convencer sua mãe irritada a lhe dar mais um saquinho de balas.
Talvez isso já tenha acontecido com você. Você fez o que seu filho queria, só para não chamar a atenção? Ou tentou resistir, apesar dos olhares repreensivos?
Se essa cena soa infelizmente familiar, anime-se. O reino animal mostra abundantes exemplos de conflitos entre pais e sua prole.
Alguns biólogos desenvolveram teorias para explicar tais conflitos. Infelizmente, é difícil aplicar teorias sobre animais a pais e filhos humanos, porque todo comportamento humano carrega uma bagagem cultural, social e psicológica.
Os parentes vivos mais próximos dos seres humanos, os primatas, oferecem algumas das comparações mais valiosas. Mas também se podem tirar lições salutares de periquitos australianos, pelicanos, gambás e babuínos.
O pioneiro das teorias sobre conflito entre animais e sua prole é Robert Trivers, biólogo da Universidade da Califórnia em Santa Cruz e pai de cinco filhos.
Num estudo de 1974, ele apontou que, nas espécies que se reproduzem sexuadamente, existe um conflito inerente de interesses entre pais e sua prole, devido às diferenças no parentesco genético.
Nestas espécies, cada um dos pais contribui com exatamente metade do material genético de cada filho. Assim, um pai ou uma mãe compartilha só 50% de seus genes com sua prole.
Para maximizar seu sucesso reprodutivo (perpetuar seus genes), o pai ou a mãe investem exatamente a mesma quantidade de cuidado e atenção em cada um deles.
Cada filho "vê" a situação sob uma ótica diversa: um grau muito maior de "parentesco" consigo mesmo do que com seus irmãos (com quem compartilha no máximo 50% de seus genes).
No útero
Os conflitos às vezes começam muito cedo. Nos seres humanos, por exemplo, a mãe e o feto se engajam numa briga pelo controle hormonal da gravidez já na sétima semana de vida.
O enjôo matinal pode ser interpretado como sinal de um desacordo entre mãe e filho. Neste caso, a disputa é sobre o que a mãe deve comer e quanto oxigênio o feto deve receber.
As coisas são muito diferentes entre os marsupiais, como o gambá. Seu período de gestação é de 12 a 13 dias. O filhote de gambá é expelido muito antes de estar em condições de discordar da mãe, pelo menos hormonalmente.
Isto acontece porque os embriões marsupiais não conseguem impedir o sistema imunológico da mãe de atacá-los. No que diz respeito ao corpo da mãe, um embrião é tecido estranho.
Durante os primeiros dois terços do período de gestação isso não é problema; o feto se desenvolve dentro de uma "membrana-concha". Quando esta membrana se rompe, o embrião se vê sem defesas e é obrigado a deixar o útero.
Quando se trata de mamíferos placentários, como os humanos, o embrião desenvolve a capacidade de lutar contra a mãe. Ele o faz mascarando determinadas moléculas, que despertam o sistema imunológico da mãe.
O embrião efetivamente se "disfarça" de tecido maternal, de modo que o organismo da mãe não vê razão para rejeitá-lo. Assim, no caso dos mamíferos placentários, é a prole que ganha o round.
As coisas pioram depois que o filhote é parido ou chocado. Pouco depois, os filhotes começam a discutir com os pais sobre a quantidade de alimento que devem receber.
Os filhotes de pelicano chegam ao ponto de entrar em convulsões, literalmente criando um escândalo para receber mais comida de seus pais. Eles se atiram aos pés dos pais, batendo –e às vezes até mordendo– suas próprias asas e cabeças.
Se tiverem oportunidade, atacam quaisquer outros filhotes que estiverem por perto.
Pode não ser muito sutil, mas essa abordagem exagerada permite aos filhotes de pelicano resolverem dois problemas ao mesmo tempo.
Primeiro, eles transmitem a mensagem de que não prover alimento poderia implicar graves consequências para o sucesso reprodutivo dos pais.
Segundo, ao afastar seus irmãos, eles garantem que não haverá concorrentes aos alimentos que trabalharam tão duro para conseguir.
As mães periquitas australianas não toleram esse tipo de comportamento. Elas alimentam seus filhotes seguindo uma "tabela" rígida, distribuindo a comida em função da idade e do tamanho dos filhotes.
O macho, por outro lado, às vezes se mostra mais influenciável. Nas raras ocasiões em que alimenta sua prole (geralmente só alimenta sua companheira), ele dá comida aos filhotes que pedem mais alto e por mais tempo.
Por que os pais precisam se prevenir contra a manipulação dos filhotes?
A resposta parece estar no fato de que pais e prole nunca se conhecem perfeitamente. Os pais jamais sabem com exatidão de quanto cuidado seus filhotes precisam. O filhote nunca sabe quanto cuidado os pais são capazes de prover.
Os pais não podem correr o risco de que seus filhotes estejam dando um alarme falso. Seria desastroso se o filhote morresse por falta de cuidados.
A situação se apresenta favorável ao filhote, pelo menos a curto prazo. A longo prazo, porém, há limites ao que os pais podem fazer.
Investir cuidados excessivos num filhote deixa menos tempo e recursos para os outros e pode comprometer a vida dos pais. Por exemplo, uma mãe pode esgotar suas reservas de gordura para continuar a aleitar um filhote exigente.
Marc Hauser, da Universidade Harvard, estudou precisamente esse problema entre os macacos cercopitecos do Parque Nacional Amboseli, no Quênia (leste da África). Ele começou por utilizar a teoria dos jogos para imitar as estratégias que poderiam ser adotadas por mães e filhotes.
A teoria dos jogos é uma maneira de analisar o comportamento animal pela qual primeiro se visualizam os membros de uma população como se estivessem jogando jogos competitivos, nos quais empregam várias estratégias, e depois se avaliam os resultados (o valor da estratégia em termos de adequação para sobrevivência da espécie).
Em muitos casos, os resultados obtidos por um indivíduo a partir de uma estratégia determinada vão depender das estratégias que os outros indivíduos estão usando. As teorias de modelos de jogos são muito apropriadas ao estudo de comportamentos sociais.
As observações de Hauser sugerem que os filhotes deveriam adotar a estratégia de "enganação". Ou seja, exagerar suas reais necessidades para obter mais cuidados.
Se a mãe se tornar "cética" e recusar-se a prover todo o cuidado que o filhote solicita, este deve começar a "falar a verdade". O modelo sugere que haverá uma contínua reciclagem de estratégias.
Enganação
Em determinados pontos do ciclo, porém, a estratégia de enganação do filhote pode dar para trás. Quando ele começa a "falar a verdade", haverá um período em que a mãe se torna vulnerável à síndrome do alarme falso.
Ela pode deixar de perceber que o filhote está "falando a verdade" e continuar a comportar-se como se o filhote ainda estivesse dando um alarme falso.
Os conflitos entre pais e prole nem sempre precisam terminar em tragédia, contudo.
Nossos próprios trabalhos sobre aleitamento entre babuínos da Etiópia mostraram que os conflitos entre mães e filhotes podem às vezes fazer parte de um "treinamento" que visa produzir uma relação mais harmoniosa.
Mães e filhotes em cativeiro demonstram níveis muito mais baixos de conflito do que os babuínos soltos. Isto acontece porque a mãe não precisa passar uma parte tão grande de seu dia alimentando-se, e assim tem mais tempo disponível para os filhotes.
Montserrat Gomendio, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), descobriu que, no caso de macacos resos em cativeiro, os conflitos entre mães e filhotes se intensificavam dramaticamente durante a época do acasalamento.
Parecia um clássico caso de mãe querendo começar a investir na próxima prole e o filhote atual se opondo a isso. Mas Gomendio descobriu que apesar dos altos níveis de rejeição que os filhotes viviam, não havia mudanças significativas na frequência em que conseguiam acesso à teta.
Durante a época do acasalamento, as fêmeas de reso transferem toda sua atenção às interações sexuais com machos e a interações agressivas com outras fêmeas. Assim, as fêmeas não conseguem dedicar a quantidade costumeira de tempo a seus filhotes.
Além disso, a presença de um filhote mamando é um estorvo para a macaca que estiver acasalando. As mães utilizam o mesmo regime de reforço negativo que as babuínas para treinar seus filhotes a se manterem afastados.
Os conflitos entre pais e prole são um fenômeno natural e muito difundido no mundo animal. É uma consequência do fato de que os animais evoluíram de maneira que seus filhotes procurem sempre um pouco mais de cuidado e atenção do que têm direito.
A única diferença, no caso dos humanos, é que as crianças aprendem mais rapidamente e têm maior habilidade de manipulação social. Conseguem exercer pressões sociais poderosas sobre seus pais.
Em pouco tempo aprendem que a maioria dos pais fará qualquer coisa para impedir que seus filhos gritem em público.

Louise Barrett e Robin Dunbar estudam comportamento de primatas no Departamento de Antropologia do University College, em Londres.
Tradução de Clara Allain

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