São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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Levei um susto: os estudantes estão muito despreparados

ALBERTO ALONSO MUÑOZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A filósofa e professora de filosofia Marilena Chaui lança este mês pela Brasiliense "Introdução à História da Filosofia - Dos Pré-Socráticos a Aristóteles". O livro é o primeiro volume de uma coleção didática sobre a história da filosofia, que compreenderá ainda o pensamento medieval e renascentista, o moderno e o contemporâneo. A seguir, Chaui defende a volta da filosofia e fala sobre a coleção que está preparando.

Folha - Que importância você vê hoje na volta da filosofia para o 2º grau?
Marilena - Sem dúvida, a simples volta de um ano de filosofia no 2º grau é muito pouco. Penso que dois anos seria melhor: um ano para introdução à história da filosofia e um ano para introdução aos grandes temas filosóficos.
Além do livro para a Brasiliense, escrevi um outro de iniciação filosófica, que a Ática deverá lançar em agosto, tratando dos grandes temas e conceitos filosóficos.
Defendo a volta da filosofia ao secundário porque estudantes e professores, em cujas escolas tem havido cursos de filosofia, afirmam que tais cursos ampliam a capacidade e desenvolvem as possibilidades de pensamento conceitual.
No entanto, sou do grupo que defende uma reformulação integral do 1º e do 2º graus, tanto no que se refere às condições de trabalho de professores e alunos quanto no que se refere a mudanças curriculares, alteração na formação dos professores, articulação maior com a universidade. Atualmente, 1º grau não forma e 2º grau não informa.
Mas sou também do grupo que não acha que seja preciso esperar a reforma do 2º grau para, então, articulá-lo à universidade. Estou convencida de que uma ação cooperativa e solidária dos professores universitários com os do 1º e 2º graus auxilia uma batalha conjunto pela mudança na educação.
A graduação universitária vem-se tornando, cada vez mais, um 2º grau avançado, meramente escolar, com uma absurda carga horária de aulas que impede a pesquisa autônoma dos estudantes. E isto é consequência das deficiências do 2º grau. Os dois livros (este, da Brasiliense e o outro da Ática) são vistos por mim como atos políticos, como sinal da responsabilidade dos universitários para com o 2º grau.
Folha - No seu livro, você evita a solução clássica de introduzir o leitor na história da filosofia pela via da apresentação "estrutural" de textos. Que vantagens você vê em preferir uma história da filosofia mais centrada nas questões do que na tecnologia interna dos sistemas filosóficos?
Marilena - Trata-se de um livro (ou de uma pequena série de livros), de caráter introdutório, e penso que esta modalidade de trabalho só vale a pena se você procurar interessar o leitor mostrando-lhe o surgimento de problemas e temas que fazem a filosofia nascer e permanecer na chamada cultura ocidental.
Procurei trabalhar em três direções: a histórica (porque os problemas e temas são suscitados pelas condições históricas materiais da Grécia), a temática (quais os temas que surgem, quais desaparecem, quais permanecem e se transformam, quais são deixados como legado para o pensamento posterior) e a individualizadora (como diferentes filósofos enfrentaram os mesmos problemas, porque suas respostas diferem, como suas soluções se transformaram em novos problemas).
Fundamentalmente, os vários volumes pretendem ser um tanto antikantianos (Kant afirma que a filosofia não tem objeto, mas é um modo de pensar: procuro salientar a existência de "objetos" filosóficos) e anti-heideggeriano (para Heidegger, a filosofia começa e termina na Grécia; procuro assinalar que a filosofia extravasa os quadros de seu nascimento).
Folha - Nos últimos anos verifica-se uma preocupação geral em vários setores em descrever um movimento de formação da "cultura uspiana". Um exemplo paradigmático é o livro recente de Paulo Arantes, "Um Departamento Francês de Ultramar", sobre a formação do departamento de filosofia da USP. Como você está vendo esse debate?
Marilena - Acabo de comprar o livro. Só o li as entrevistas dadas pelo Paulo e por isso ainda não me sinto em condições de opinar.
Pelo título e pelas entrevistas, parece que ele pretende uma certa exaltação do departamento de filosofia, posto como fundador do pensamento filosófico brasileiro (Paulo faria o que Antonio Candido fez para a literatura ou Sérgio Buarque para a história).
Mas, considerando outras coisas que ele andou escrevendo, imagino que o livro pretenda ser o correspondente local da "Ideologia Alemã", de Marx. Seria a "Ideologia Brasileira", não é?
Estou me preparando para o próximo volume, pois suponho que será sobre a minha geração. Cronologicamente, corresponderia a outro livro de "Marx: a Miséria da Filosofia"! Divertido.
Folha - Você voltou à USP depois de quatro anos à frente da Secretaria Municipal de Cultura, na gestão Luiza Erundina. Que mudanças você percebeu na universidade nessa período?
Marilena - Na universidade, como um todo, percebi o recrudescimento de antagonismos que vinham desde os anos 80, entre dois projetos de modernização.
Um, que vê a modernização como empenho da universidade na ajuda à solução dos graves problemas econômicos e sociais do país, e outro, que considera a modernização como reorganização da universidade nos modelos da grande empresa e nos vínculos preferenciais (para financiamento de pesquisas) com o setor empresarial.
Quanto ao departamento de filosofia, encontrei-o ativo e entusiasmado, com novos centros de pesquisa, um crescimento da revista "Discurso" e a criação da "Discurso Editorial", para publicações, vídeos, cursos.
Mas levei um susto quanto aos estudantes. Refiro-me aos estudantes de graduação do primeiro ano de filosofia, para os quais dei aulas no segundo semestre de 93. Numerosos, interessados, mas totalmente despreparados (com as exceções de praxe): desconhecem história da filosofia, desconhecem línguas estrangeiras, tem enormes dificuldades com a língua portuguesa, dificuldades para lidar com conceitos.
Folha - Atualmente você termina seu livro sobre Espinosa. Como será esse trabalho?
Marilena - Inicialmente seria a publicação de minha tese de livre-docência (de 1977), com uma revisão. Para fazer a revisão, fui-me embrenhando em temas que eram tocados superficialmente e o resultado foi que a tese revista ficaria muito longa e pesada.
Decidi, então, publicar sob a forma de ensaios, divididos por assuntos: há um conjunto de ensaios sobre a invenção do espinosismo (como foi instaurada uma tradição interpretativa, desde o século 17), um outro conjunto sobre temas metafísicos, um conjunto, que julgo central, sobre ética e política e alguns sobre a relação entre Espinosa e a cultura judaica.
O fio condutor é a idéia de imanência e de liberdade, a crítica do imaginário e a atualidade de Espinosa que, no meu entender, é tanto maior quanto mais o inserimos nas questões do século 17.
A presença da história econômica e política é grande nos ensaios, assim como da história das idéias. Procuro a articulação interna entre história e a reflexão espinosana. A ênfase, evidentemente, recai sobre o radicalismo corajoso de Espinosa, quando comparado à tradição e aos problemas contemporâneos.
Folha - Que planos você tem para depois do seu Espinosa?
Marilena - Ainda não sei. Tenho feito muitas pesquisas sobre a Renascença, mas também tenho me interessado pelas questões contemporâneas: a nova forma assumida pelo capitalismo, as ideologias neoliberal e pós-moderna, a mídia eletrônica.
E, é claro, o Brasil, tanto no novo contexto internacional quanto em seus aspectos sociais cristalizados (por exemplo, o mito da não-violência brasileira, o autoritarismo social, o messianismo milenarista na política).
Tenho procurado trabalhar a idéia de que uma das dificuldades maiores para a instituição da democracia no Brasil decorre do modo como a divisão de classes se exprime na polarização entre carência e privilégio.
Uma carência é sempre particular e específica, e não consegue generalizar-se num interesse nem universalizar-se num direito: um privilégio também é sempre particular, não pode generalizar-se num interesse nem universalizar-se num direito. E a democracia é criação e garantia de direitos.

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