São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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A nova África do Sul

DAVID LERER

A passagem do apartheid para o governo da maioria negra está deslizando de maneira espantosamente calma, por enquanto. Bombas terroristas da ultra-direita branca, resmungos do partido zulu perdedor, e só. Quem fala em "clima de guerra civil" não sabe o que está falando.
Nem há comparação com Angola, onde Agostinho Neto proclamou a república revolucionária na marra, sob cobertura de cubanos montados em tanques soviéticos, numa Luanda sem luz nem água, sitiada e bombardeada por tropas estrangeiras –sul-africanas inclusive. Angola esvaziada por um êxodo branco de proporções bíblicas; arruinada por uma guerra tribal de quase 20 anos e sem solução à vista. E o pior, governada hoje por burocratas viciados na boa vida e nas propinas da empreiteira Odebrecht.
Angola, que já foi um dia o país mais rico da África Negra depois da Nigéria, é o exemplo vivo do que não fazer na África do Sul.
O marxista Mandela vai caminhar num fio de navalha. Terá de resistir às pressões dos sindicatos que o apoiaram: o salário médio de um operário não-especializado é US$ 500 por mês, contra US$ 80 no Quênia e US$ 50 no Zimbábue, países de bom nível para os padrões africanos.
Mas apenas 50% dos negros urbanos estão no mercado formal de trabalho, enquanto 25% são domésticos e camelôs e os restantes 25% não têm serviço. A grita por empregos será grande, e maior será a tentação de criar empregos fantasmas para amigos e parentes, perversão tão africana quanto brasileira.
África do Sul e Brasil têm muita coisa em comum. Medicina, por exemplo. Christian Barnard fez o primeiro transplante de coração na Cidade do Cabo, seguido de perto por Zerbini no Hospital das Clínicas de São Paulo.
Porém, lá como aqui, crianças das favelas ainda morrem de meningite. Com uma diferença: no Brasil morrem muito mais, e de todas as cores. Com "apartheid" e tudo, a África do Sul está bem à frente do Brasil no terreno social.
Se os brancos souberem ceder e os negros puderem esperar, a África do Sul tem tudo para dar certo. Ao contrário do resto do continente, os telefones funcionam, a eletricidade é confiável, os trens rodam, as estradas são transitáveis e há gente qualificada.
Sua poderosa economia tem sido apenas extratora: diamantes, ouro, manganês, platina, urânio. Com o fim da quarentena, o rótulo "Made in South Africa" passará a ser aceito. Surgirão indústrias manufatureiras médias que darão emprego à mão-de-obra negra. Segundo a revista inglesa "The Economist", "o governo do CNA terá de ser muito ruim para prejudicar a economia sul-africana mais do que o fez o apartheid".
Na paupérrima África Negra, a nova África do Sul poderá desempenhar o mesmo papel dinamizador que o novo Japão ex-militarista teve no Sudeste Asiático. Os "tigres" já foram gatinhos famintos.
Acreditem se quiserem, mas em 1965 os coreanos do Sul eram mais pobres do que os habitantes de Gana (África Ocidental). Hoje, a riqueza total da África, segundo maior continente, com 30 milhões de quilômetros quadrados, é igual à da Bélgica. Nada funciona, e o mundo ocidental, eliminada a ameaça comunista, não quer mais nem ouvir falar de miseráveis.
Até agora, apenas 5% do comércio africano tem sido feito com os vizinhos. O grosso segue as velhas retas coloniais européias. Falta integração regional e cooperação mútua.
Governada por um líder da estatura de Nelson Mandela, a África do Sul poderá ser o motor dessa integração. Precisa ser, antes que a África Negra caia ao ponto de não-retorno.
Os arrogantes afrikaners desperdiçaram cerca de US$ 25 bilhões para desestabilizar seus vizinhos. Todos saíram prejudicados. Chegou a hora e a vez de os negros corrigirem os erros dos brancos.

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