São Paulo, domingo, 1 de maio de 1994
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O pacto Fernando Henrique

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

A candidatura Fernando Henrique à Presidência da República surgiu como uma alternativa à candidatura de Lula. Uma série de circunstâncias de ordem política e pessoal, entretanto, estão levando a um fenômeno político surpreendente: em torno de Fernando Henrique e de sua candidatura está em vias de se formar um grande pacto político social-democrático e moderno.
A candidatura Fernando Henrique deixa de ser uma candidatura anti-Lula, para ser a afirmação de aspirações fundamentais da sociedade brasileira, que afinal encontram um veículo adequado para expressá-las.
As razões da resistência a Lula são conhecidas. Derivam mais do radicalismo e principalmente do atraso de certas posições majoritárias na militância do PT, do que das posições do próprio candidato.
Há no Partido dos Trabalhadores um corporativismo estatal e um nacionalismo dos anos 50 que pouco têm a ver com seu candidato, mas que projetam sobre ele uma sombra arcaica. Em compensação, existe em sua candidatura um poderoso fator positivo: uma crítica cerrada à miopia das elites brasileiras, que permitem e favorecem a escandalosa concentração de renda existente no país.
A partir dessa crítica e das suas indiscutíveis qualidades pessoais, foi possível a Lula obter a intenção de voto de um terço do eleitorado, inclusive uma parte significativa das elites intelectuais e burocráticas do país. Não logrou, entretanto, qualquer penetração na alta e na média burguesia brasileira, e continua a ser olhado com desconfiança por setores majoritários das classes médias.
Dentro desse quadro, surgiu a candidatura Fernando Henrique. Inicialmente como a candidatura do grande intelectual e do notável homem público que, como ministro da Fazenda, logrou apresentar à sociedade brasileira um plano de estabilização macroeconomicamente consistente e politicamente viável. Em um primeiro momento, como o político que a sociedade e o seu próprio partido pressionaram de todas as formas para que se demitisse a tempo do ministério para ser candidato à Presidência.
O fato de deixar o plano de estabilização a meio caminho foi visto como secundário: sua equipe foi mantida; o presidente está comprometido com o plano; o novo ministro é capaz e está afinado com a idéia; o Congresso chegou a aprovar uma reforma constitucional para viabilizar seu lado fiscal ao verificar que a sociedade nele deposita suas esperanças. Depois de eleito, Fernando Henrique terá melhores condições para consolidá-lo.
Mas, três semanas depois de ter deixado o ministério, já é possível ver sua candidatura sob um novo ângulo, na medida em que Fernando Henrique começa a personificar, muito mais do que uma mera aliança eleitoral, um grande pacto político, uma grande coalizão de classes em torno de algumas idéias-força. E, ao acontecer este fato, sua candidatura deixa de depender diretamente tanto do êxito do plano –embora esse êxito continue provável, na medida em que a fase URV vai transcorrendo conforme o previsto, podendo se prever para julho a reforma monetária e o controle da inflação.
O Brasil não tem um grande pacto político desde que o fracasso do Plano Cruzado levou ao colapso o "pacto democrático das diretas-já", que se constituiu em meados dos anos 70. Desde então vivemos em um vácuo político, do qual se aproveitou Fernando Collor para se eleger presidente em 1989.
Agora, diante da perspectiva concreta da eleição de Fernando Henrique, uma nova grande coalizão de classes começa a se delinear, a partir de algumas idéias-força: democracia, ética na política, distribuição de renda, reformas econômicas orientadas para o mercado, reconstrução do Estado, definição de uma nova estratégia de desenvolvimento baseada, do lado da oferta, na educação e na incorporação de progresso técnico com vistas a uma maior competitividade nacional, e do lado da demanda, no consumo de massas, que a distribuição da renda permitirá, e na conquista competitiva dos mercados externos.
Nestes termos, e não obstante o impacto conservador que teve sobre o Brasil nos últimos anos a onda neoliberal proveniente do Norte, trata-se de um pacto político social-democrático e moderno.
Um pacto que defende a privatização e a liberalização, que privilegia a disciplina fiscal e a redução do Estado, mas que usa essas reformas não para chegar ao Estado mínimo dos neoliberais, o Estado incapaz de completar a ação coordenadora do mercado, mas para reconstruir o Estado, devolvendo-lhe a capacidade perdida de promover o desenvolvimento e a distribuição de renda.
É a força dessas idéias, é a afirmação da democracia e da ética na política, é a recusa tanto de um neoliberalismo que violenta a sociedade e ignora o papel fundamental do Estado, quanto de um velho nacional-desenvolvimentismo arcaico, fixado nos anos 50, que agora se cristalizam no que estou chamando de Pacto Fernando Henrique, ou seja, na coalizão de classes que une as tendências de centro-esquerda e centro-direita em torno da candidatura de Fernando Henrique.
É este fato que leva o PFL e o PTB a proporem coligação eleitoral com o PSDB em torno da candidatura presidencial, e que certamente levará amplos setores do PMDB na mesma direção.
Todas essas coligações serão úteis para a campanha. É discutível, entretanto, que o ato de ceder ao PFL a vice-presidência em troca de seu apoio reforce o pacto político em formação. Pelo contrário, poderá enfraquecê-lo, roubar-lhe coerência, na medida em que existe hoje uma convicção profunda na sociedade brasileira de que a vice-presidência não deve ser objeto de barganha.
O candidato a vice-presidente deve ser uma emanação do candidato a presidente. Em princípio, deve por ele ser escolhido dentro dos quadros do próprio partido. Caso seja de outro partido, deve sempre ser uma escolha pessoal sua, porque é necessário que esteja identificado com a mensagem e o estilo que sua candidatura transmite.
Por outro lado, sabemos que um partido, por mais forte que seja ao nível regional, pode trazer poucos votos ao candidato à Presidência. Basta lembrar a ínfima porcentagem de votos obtida pelo candidato do PFL à Presidência em 1989. O apoio de candidatos a governador pode ser importante em diversos Estados, mas esse apoio virá em qualquer hipótese, desde que a candidatura se mantenha fiel ao pacto que a sustenta.
Na verdade, a grande força da candidatura Fernando Henrique está na sua coerência. Está no fato de ser de centro-esquerda sem ser arcaica, de ser voltada para o interesse nacional sem ser nacionalista, de ser moderna sem ser conservadora, de ser voltada para o mercado sem ignorar suas limitações, de pretender liberalizar e privatizar sem querer destruir ou predar o Estado.
É esta grande coerência que a coloca no centro da sociedade brasileira, que lhe garantirá um apoio crescente nos próximos meses, e que provavelmente levará Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República.

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