São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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Senna passa de herói a mártir

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Ayrton Senna foi um herói para seus admiradores. Desde ontem, ampliou o espaço ocupado por sua imagem na mitologia do cotidiano moderno para se tornar bem mais que isso. É agora mártir.
Nesse imenso salto qualitativo, está a aparição da morte como um drama que é individual, mas ao mesmo tempo só compreendido na medida em que é o produto de um processo cultural e histórico.
As bibliotecas do Ocidente registram com enfoques inesgotáveis a dificuldade de se lidar com a morte.
Não quando ela é corriqueira, a chamada "boa morte", que a Idade Média acreditava ser precedida de sacramentos e definia como o desfecho de uma vida caridosa e com pecados perdoados.
A morte aceitável correspondia, grosso modo, à possibilidade de o cristão evitar a escala no purgatório (noção que surgiu no século 12) e ir direto para o paraíso.
A morte temida era a morte inesperada. O medo de sua ocorrência abasteceu momentos brilhantes da literatura. Em "A Tempestade", de Shakespeare, um dos personagens se refere ao temor do naufrágio:
"Que seja feita a vontade de Deus, mas eu gostaria de morrer de morte seca", diz ele.
Ariosto, em "Orlando Furioso", vai em sentido inverso com a imagem do herói destemido, paladino inacessível ao medo e que enfrenta a morte de peito aberto em sua luta contra os infiéis.
Ariosto foi um dos fabricantes de um modelo que seria constantemente atualizado e teria, como descendente direto, o herói esportivo contemporâneo.
O heroismo é uma construção narrativa. Primeiramente, no cristianismo, com o martírio dos santos. Bem depois, a partir do século 8, com a figura do cavaleiro.
O cavaleiro medieval foi o personagem que mais se aproxima do atual esportista: comemora a vitória obtida com riscos elevados.
Militar em tempos de guerra, o cavaleiro passou à rotina lúdica durante os prolongados períodos de paz. Sua prática, por volta do século 12, é a que mais se aproxima da atual noção de esporte.
A pólis grega valorizava entre os cidadãos a prática esportiva, mas não era a mesma coisa. Inexistia o individualismo e a percepção não mitológica do herói.
Assim, é com a cavalaria medieval que o desempenho do indivíduo passa a ser objeto de uma linguagem específica que passa a ter ampla aceitação popular.
O herói é aquele que se arrisca sem ter um inimigo concreto.
Sua morte em torneio é sempre acidental. É uma morte trágica porque inesperada no interior da mitologia que o sustenta.
Evidencia-se o efeito de contraste com outras mortes, por volta do século 15, quando a morte chegava de surpresa por meio da peste bubônica.
A peste produzia vítimas. Só a cavalaria produzia heróis, que o Ocidente não tratava de forma homogênea.
A tradição latina valorizava o vencedor e só aceitava o derrotado quando emboscado ou por ter chegado aos limites de sua resistência.
Mas a mitologia germânica reverenciava bem mais o herói morto. Seu cadáver era recolhido pelas valquírias e levado para conviver num conselho presidido pelo deus Wotan.

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