São Paulo, segunda-feira, 2 de maio de 1994
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O cidadão e o eleito

FLORESTAN FERNANDES

Fala-se demais, na linguagem corrente, sobre a cidadania e o cidadão. Parece que repetimos, à brasileira, a Revolução Francesa! A cidadania, como conceito político, não se resume em viver na cidade. O cidadão brasileiro, em sua imensa maioria, é um eleitor. A Constituição de 1988 eleva-se às alturas, ao consagrar direitos e liberdades que fogem à rotina de milhões de plebeus, que são simples excluídos e, apesar das proteções constitucionais, oprimidos e expatriados dentro do seu país.
"Miseráveis da terra", eles "votam" por múltiplas razões. Obrigações juradas aos de cima, medo da violência, venda do voto como uma espécie de submercadoria barata, relações tradicionais ou fundadas em valores perante os "senhores do voto" (os "chefes" ou "patrões", os "compadres", o líder populista, os "cabos eleitorais" etc.). São eleitores de ocasião, manipulados pela mídia e por outros meios. A situação tem se alterado, com o desenvolvimento capitalista e a consolidação do regime de classes sociais, as migrações para as cidades, a difusão da mentalidade operária, os movimentos sociais, a educação... Mas de modo lento e oscilante. Pois até nas nações centrais há brechas que interferem na racionalidade do voto e da cidadania.
A cidadania em uma sociedade de classes (capitalista ou subcapitalista), qualifica-se como cidadania burguesa. Mesmo que todos compartilhem os atributos do cidadão, as desigualdades econômicas, psicossociais, culturais e políticas moldam vários grupos e estratos distintos de cidadãos. Ao discutir-se a cidadania e a universalização da cidadania, essa é a premissa de que "ser igual perante a lei" quer dizer ser desigual na organização da economia, na estrutura da sociedade, na participação da cultura e no acesso ao poder político indireto ou no poder político estatal.
A "sociedade civil burguesa" contém, portanto, diferenças insuperáveis e conflitos cujo grau de antagonismo a estilhaçam em todos os níveis, verticais e horizontais.
Trata-se de uma sociedade de coexistência –não de confraternização. O poder, macro ou micro, resulta da coexistência, a qual impõe, em todas as instituições e no conjunto, um comando centralizado, com frequência despótico. A civilização mantém-se, cresce e diferencia-se através do recurso a dinamismos que sujeitam as diferenças incompatíveis a limites que procedem da socialização e, no caso de totalidades vitais para a ordem, da representação. Esta funciona como um mecanismo compensatório. Sem eliminar ou reduzir as desigualdades, confere aos de baixo papéis que os colocam numa relação imediata com o poder especificamente político.
Os "mais iguais" tendem a comprimir o espaço dos de baixo na sociedade civil (ou a excluí-los). Daí a importância da democratização da cidadania. Ela confere àqueles que não pertencem às classes dominantes probabilidades de intervir no funcionamento e na transformação da ordem social. Convertem-se em "cidadãos ativos" e fundam seus próprios partidos, reformistas ou revolucionários.

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