São Paulo, terça-feira, 3 de maio de 1994
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García Márquez prepara memórias

ROSA MORA
DO "EL PAÍS"

Pergunta - O sr. quer falar de "Del Amor y otros Demonios"?
Resposta - Nunca falo de meus romances, e menos ainda deste. Com nenhum de meus livros eu me senti tão inseguro quanto com este romance. Tem sido algo diferente, nada tem sido igual.
Sei inclusive que circulou uma cópia pirata, uma versão diferente da edição definitiva. Um jornal publicou um resumo do livro e isso não me preocupa, mas o que mais me incomodou foi o fato de ser tão mal feito.
Pergunta - A que o sr. atribui essa insegurança ao escrever o romance?
Resposta - Aconteceu uma coisa que nunca antes me havia ocorrido. Em muitas partes do livro era ele que me manipulava e não o contrário, e isso me deu uma grande insegurança. Depois me tranquilizei.
Meus amigos de verdade, aqueles em que confio, aqueles que fazem o sacrifício enorme de ler um rascunho e dizer a verdade, me convenceram. Disseram que haviam gostado muito, que é um dos melhores livros que já escrevi.
Houve inclusive quem dissesse que é melhor do que "Cem Anos de Solidão", romance que eu detesto, aliás. Agora estou satisfeito com "Del amor y otros demonios".
Pergunta - Foi muito difícil escrevê-lo?
Resposta - Fiz 11 versões diferentes e corrigi seis provas impressas completas.
Pergunta - O sr. pensa, como Juan Marsé, que um romance não se acaba nunca? Agora mesmo acaba de introduzir novos episódios em "El Embrujo de Shangai".
Resposta - Não releio meus livros por medo, porque começo a ler e pego a caneta e começo a corrigir, e não páro mais. Me impus como norma nunca modificar um livro depois da primeira edição.
Por isso faço tantas versões e correções. No caso de "Del amor y otros demonios", como a história acontece em Cartagena de Indias no século 18, eu não quis que houvesse anacronismos nem erros de nenhum tipo.
Pergunta - O sr. avançou com suas memórias?
Resposta - Não, estão paradas. Eu as escrevo entre dois livros e agora já estou imerso em outro.
Pergunta - Podemos falar do novo romance?
Resposta - Será um livro-reportagem. Sinto tantas saudades do jornalismo! Algum tempo atrás, num pequeno povoado da Colômbia, o pão foi envenenado e as pessoas começaram a ficar doentes...
Eu quis ir para lá e escrever uma reportagem. Eu já tinha o título: "O pão envenenado". Mas logo me dei conta de que se o fizesse, eu mesmo me transformaria em reportagem.
Os jornalistas ficariam mais interessados em como eu fazia a reportagem do que no que acontecia com o pão. Por isso deixei para lá, mas agora estou certo de que vou poder fazê-lo.
Pergunta - Se o sr. tem tanta vontade de fazer jornalismo, porque não volta a escrever artigos, como a série que publicou no "El País"?
Resposta - Eu os escrevi também entre dois livros, durante três anos, para que meu braço não esfriasse, para que não precisasse reaprender a escrever. Foram publicados em forma de livro. Mas isso já é passado.
Pergunta - E a escola de jornalismo que o sr. está montando em Cartagena de Indias?
Resposta - Tenho o projeto bastante avançado e vou chamá-la de escola-oficina de jornalismo, para diferenciá-la das faculdades de Ciências da Comunicação, que se destinam a acabar com o jornalismo.
Tem patrocínio da Unesco e será uma escola de práticas, haverá inclusive aulas de utilização de gravadores e de técnica de entrevistas.
Para ser jornalista é preciso ter uma base cultural considerável e muita prática. Também é preciso muita ética. Há tantos maus jornalistas que quando não têm notícias, as inventam...
Pergunta - Não são tantos assim.
Resposta - Há cada vez mais maus jornalistas, mas não posso falar mal de teus colegas.
Pergunta - Voltando a suas memórias, que serão temáticas, não cronológicas, o sr. já tem algo escrito?
Resposta - Sim, 100 folhas de caderno. Quando tiver 300, publicarei o primeiro volume. São capítulos independentes, que estou pensando em dedicar ao jornalismo, à infância, aos amigos...
Pergunta - De que tratam essas primeiras 100 folhas?
Resposta - De uma viagem que fiz com minha mãe a um pequeno povoado colombiano. Acho que tudo que sei saiu dessa viagem.

Tradução de Clara Allain

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