São Paulo, terça-feira, 3 de maio de 1994
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Cacá Rosset volta com Shakespeare escrachado

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Título: A Comédia dos Erros
Autor: William Shakespeare
Diretor: Cacá Rosset
Elenco: Christiane Tricerri, Maria Alice Vergueiro, José Rubens Chachá e outros
Quando: Ensaios abertos a partir de hoje. Estréia dia 11 de maio. Quartas a sextas, às 21h, sábados, às 20h e 22h, domingos, às 18h30 e 21h.
Onde: Teatro Faap (r. Alagoas, 903, tel. 824-0104)
Quanto: Entrada gratuita nos ensaios gerais. 8 URVs quartas e quintas, 10 URVs sextas a domingos. De 11 a 15 de maio, 50% de desconto.
Sinopse: Dois irmãos separados logo após o nascimento reaparecem na mesma cidade já adultos, com seus dois escravos, também separados no nascimento

Cacá Rosset e o Ornitorrinco estão de volta, com mais uma comédia escrachada. Agora, a primeira peça escrita por Shakespeare, baseada em Plauto. Os ensaios gerais começam hoje e vão até o dia 8, com entrada gratuita, no teatro Faap. A estréia é no dia 11.
Em entrevista à Folha, o diretor conta como escolheu "A Comédia dos Erros", cuja primeira montagem, dirigida por ele, estreou há quase dois anos em Nova York. Conta também por que deixou de ser ator e o que a sua nova montagem de Shakespeare tem a ver com Os Três Patetas.

Folha - Já vão quase três anos anos desde que você montou "Sonho de uma Noite de Verão".
Cacá Rosset Rosset - Isso é constante no trabalho do Ornitorrinco. Nos últimos dez anos, a gente estreou cinco peças. Em parte, pelo fato de terem sido peças que ficaram muito tempo em cartaz.
E eu sou lento. Demoro para fazer e depois demoro para parar de fazer.
Folha - E você tirou as peças de cartaz quando elas ainda estavam com público.
Rosset - Todas as últimas. "O Doente Imaginário", "Teledeum", "Ubu" nem se fale, poderiam ser mini-Irma Vaps, mini-Mãos de Eurídice. É que chega um limite em que ningúem aguenta mais.
Folha - Por que vocês não trabalham com repertório?
Rosset - Não dá. São coisas gigantescas. A única peça com que a gente conseguiu fazer isso, um pouco, foi "Ubu". Que na época eu achava uma grande produção, mas hoje em dia é praticamente teatro de bolso (ri).
Folha - Você fez "Sonho", agora faz outra comédia de Shakespeare e já tinha falado de "As Alegres Comadres de Windsor"...
Rosset - - É, tem esse projeto, que talvez acabe saindo, mas lá em Nova York. Não está descartada.
Folha - Seria a sua terceira comédia de Shakespeare. Por que você é tão ligado às comédias shakespearianas?
Rosset - Eu gosto de Shakespeare, como qualquer ser humano gosta. O "Sonho" era um projeto antigo. "A Comédia dos Erros" era uma peça de que eu gostava.
Ela acabou acontecendo em função de um papo que eu tive com o (Joseph) Papp (então diretor do Shakespeare Festival, de Nova York).
Ele viu o "Sonho", foi a última peça que viu na vida, e me perguntou se eu queria fazer algum trabalho com elenco americano, com alguma peça de Shakespeare.
Eu citei "As Alegres Comadres de Windsor", "A Comédia dos Erros" e "Noite de Reis". Depois da morte dele, me chamaram.
Folha - O que a montagem brasileira traz da americana?
Rosset - - O figurino é de lá. E parte da equipe é de lá. O iluminador, o "stage-fighting coach", que é o preparador de lutas, uma coisa que não tem no Brasil e uma coisa genial.
Esse cara trabalha sobretudo com "physical comedy" e com "slapstick", que é a luta cômica, tapa, "Os Três Patetas". Também trouxe o Mark Bennet, que fez a música original, que já esteve aqui duas vezes.
E o "dramaturg", que fez toda a parte teórica, de assessoria, e que dirige o American Theater Center de Paris, fundado agora. Quer dizer, eu acabei trazendo material humano e material desumano (ri) para cá.
Folha - Você tem alguma base teórica em especial com que trabalhou na peça?
Rosset - Tem várias coisas. "A Comédia dos Erros" é provavelmente a primeira peça do Shakespeare. E tem um cena de resolução complicada, porque a peça, ela é muito próxima da peça do Plauto, "Os Gêmeos"...
Folha - E você sempre citou o Plauto como o seu grande autor.
Rosset - Porque é a coisa da comédia grossa. A coisa seminal do teatro dos bufões, do teatro das piadas de mau gosto, da canalhice. A gente faz um pouco isso.
O Ornitorrinco é uma reserva ecológica do teatro de bufões, do teatro de canalhas. A estética do grupo é um pouco essa.
Um teatro de nudistas, um teatro de piadas politicamente incorretas, piadas grosseiras, torta na cara (ri).
Folha - Mas você falava da primeira cena.
Rosset - Ah, então, a primeira cena é fundamental, mas dá um registro falso do espetáculo. É o Egeu contando de um acidente de navio, que parte ao meio e cada gêmeo vai para um lado.
Folha - O problema da narrativa em Shakespeare, em que ninguém entende nada.
Rosset - E o duque fala assim, "conte-nos brevemente o que aconteceu" (ri), e vêm cinco páginas (ri).
É uma cena de difícil resolução, porque ela não pode dar uma chave falsa da peça. O cara pode achar que entrou na peça errada (ri).
Eu quis dar um tratamento para essa cena de auto- da-fé medieval, uma coisa meio Bosch, esse clima que tem de combate entre o Carnaval e a Quaresma.
Ao mesmo tempo, criei um pequeno prólogo, em que a gente traz o próprio Shakespeare. A gente teve uma grande sorte, porque o Mário César Camargo eu acho que nem em filme americano alguém ficaria tão parecido (ri).
Então o Shakespeare aparece no começo e escreve, na lousa, "A Comédia dos Erro" (sic). E fica lá.
Folha - Anunciando que é uma montagem de Cacá Rosset.
Rosset - Das comédias do Shakespeare, é a mais adequada ao estilo do grupo, dos atores, à estética do grupo.
O "Sonho" era uma comédia, mas em termos. Essa não, porque ela é mais próxima do Plauto. E porque é um Shakespeare considerado menor, e eu adoro. Eu sempre trabalhei com as peças consideradas menores.
Quando trabalhei com o Brecht, também foi com as peças consideradas menores. São as mais interessantes, são as mais livres. Não têm o peso cultural. Eu prefiro essas peças que você pode sodomizá-las mais (ri).
Folha - O teatro Faap não é pequeno para uma montagem do Ornitorrinco?
Rosset - É, mas tem um espírito super-legal aqui, ao contrário de outros em que eu trabalhei. Depois, as mulheres mais belas de São Paulo estudam aqui. É impressionante.(ri)
Então, eu escolhi muito por isso. Segundo, porque é perto de casa e perto da casa da Maria Alice e eu quero dar conforto para ela.
Folha - Como está sendo a volta da (atriz) Maria Alice Vergueiro?
Rosset - Ela está fazendo uma religiosa (ri). Ela canta um solo maravilhoso. Está ótima. A gente briga diariamente.
Folha - Quando foi a primeira vez em que vocês trabalharam juntos?
Rosset - Foi quando eu tinha onze anos, no colégio Aplicação. "As Preciosas Ridículas", do Moli`ere. Ela me dirigiu. Hoje eu me vingo de tudo o que ela fez comigo (ri).
Folha - Desta vez você não está como ator?
Rosset - Não. Eu me aposentei como ator. Eu só consigo trabalhar alcoolizado. Eu fui a um patologista e ele disse que eu tinha que escolher (ri). Ou o teatro ou a vida (ri).

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