São Paulo, quinta-feira, 5 de maio de 1994
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A genealogia do mito

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – A verdade costuma ser cínica. Por mais que lamentemos a morte de Ayrton Senna, o fato é que Nelson Piquet tem razão quando diz que tudo está certo na Fórmula 1. Cavalo na chuva é para se molhar. O encanto e os lucros de cada corrida são justamente a taxa de perigo, do desafio à morte. Se as corridas e os carros se tornarem imunes ao perigo, se a Fórmula 1 for reduzida a uma prova de patinetes –quem patrocinará o quê?
Tanto Piquet como os dirigentes da FIA disseram mais ou menos a mesma coisa: os pilotos ganham muito dinheiro para isso mesmo, para arriscarem a vida. No caso deles, de forma sofisticada, com o circo montado em escala mundial. São artistas como aqueles que trabalham em circos mais modestos, os que têm lona por cima. Para dar o salto triplo sem rede, o acrobata arrisca a vida duas, três vezes por noite. E ganha muito menos.
Como se vê, é um raciocínio cínico, mas indestrutível como o cockpit dos carros da Fórmula 1.
O caso de Senna tem um diferencial. Ele transcendeu ao herói, ao campeão, ao brasileiro que deu certo. Transpôs a fronteira, o átrio sombrio do mito. E os mitos –os mais duradouros e universais– costumam ser eternizados com chagas, cobertos de sangue, imolados. O maior dos mitos ocidentais –Jesus de Nazaré, que se tornou o Cristo– não seria nada se continuasse na manjedoura de Belém, recebendo o hálito do burro e da vaca do presépio. Coroado de espinhos, a sofrida carne exposta e pregada na cruz, cruz recortada num céu igualmente sombrio –eis o mito.
Evidente, não há comparação possível, nem sequer aproximação. Mas os grandes mitos são os grandes mutilados: Joana D'Arc na fogueira, César apunhalado pelas costas, Tiradentes enforcado, Lincoln, Guevara e John Lennon assassinados –ninguém se torna mito andando de patinete no quintal de casa. É preciso vir para a chuva –chuva de sangue e memória que fecunda o chão anônimo e faz nascer e frutificar o mito.

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